O Cuiabá já definiu o alvo para tentar evitar o rebaixamento neste ano. A primeira tentativa foi Álvaro Pacheco, do Vitória de Guimarães, de Portugal. Depois namorou João Pedro Souza, do Famalicão, clube português também, mas fechou com Armando Gonçalves Teixeira, o Petit, francês naturalizado português. Como se vê, o projeto era trazer um estrangeiro.
Se o Vasco, após a saída de Ramón Diaz, seguir nessa mesma linha, e o Cuiabá conseguir efetivar o seu plano A, chegaremos a marca emblemática de 10 times da Série A — a metade — não treinados por brasileiros. O passo inexorável seguinte, ainda mais expressivo do ponto de vista histórico, é esse que você já percebeu. Sim, os estrangeiros serão maioria na elite brasileira em pouco tempo.
Há uma década, a ideia de um clube dirigido por alguém de fora era descartada na origem. O pensamento corrente convergia para o do corpo estranho incapaz de se adaptar ao Brasil ou de se comunicar com os jogadores, inclusive taticamente. Houve exceções, claro, mas só para confirmar essa regra.
Os paradigmas estão caindo. Dois já desabaram. Um terceiro está em curso. O quarto virá como trombeta a ecoar pelo mundo inteiro daqui a alguns anos. Vamos a eles, os paradigmas esfarelados. O primeiro deles foi a retomada dos estrangeiros através do olhar europeu, com Jorge Jesus no Flamengo, no meio de 2019, há cinco anos — ou meia década, para dar um tom mais dramático.
O segundo atende pelos títulos. Não apenas os de Mister JJ, mas os de Abel Ferreira, que no final do ano seguinte desembarcaria no Palmeiras para erguer taças em série. Em quatro anos, Abel se tornou o maior técnico da história do Palmeiras. Não só por ganhar, obviamente. É mais do que isso.
O problema é que antes, o estrangeiro no Brasil era sinônimo de fracasso e demissão em três meses. Ou dois. Um mês, talvez. Por preconceito e má vontade de cartolas, jogadores, imprensa e até torcedores, esse era o entendimento. Dirigente que apostasse em estrangeiro logo ganhava o carimbo de inventor.
O terceiro paradigma quebrado é o de que esse fenômeno seria uma onda. Você sabe como são as ondas. Elas ganham volume e crescem até lá no alto, espuma farta e assustadora capaz de muitos caldinhos, mas seu destino é morrer na praia e voltar ao mar sob forma de uma rasa e inofensiva lâmina d'água. Se só um ganha numa cultura em que reina o império do resultado, no qual o vice é o primeiro dos últimos, em pouco tempo haveria muitos estrangeiros demitidos.
Encanto desfeito, tudo voltaria ao normal, com brasileiros se revezando nos cargos da elite. Não tem sido assim. Entre idas e vindas, os estrangeiros seguem firmes no mercado nacional. Coudet foi e voltou ao Inter. O São Paulo demitiu Hernán Crespo lá atrás e agora trouxe Luiz Zubeldia.
Não só os grandes. O próprio Cuiabá é exemplo. A família Dresch já viveu bons e maus momentos com portugueses, inclusive demitindo um por resultados ruins e trazendo outro para permanecer na Série A. Foi assim quando trocou Ivo Pereira por Antônio Oliveira, agora no Corinthians. Ganhando ou perdendo, segue preferindo estrangeiros.
Não é mais só pelo salário, menor em relação ao período dos supertécnicos. Os mais antigos lembrarão. Foi um marco na TV brasileira. Luxemburgo, Felipão e cia recebiam até cachê por participação, embora suspeito que fossem de graça, de tão bom que era o programa apresentado pelo Milton Neves aos domingos, na Band. Ninguém tinha mais poder daquela casta — de ótimos técnicos, a propósito.
Por fim, o quarto paradigma a ser quebrado. A última barreira desse processo histórico em andamento diante dos nossos olhos. Chegará a Copa do Mundo em que nossos sonhos não serão embalados por um brasileiro à beira do campo. Ainda não na próxima. A edição tríplice nos Estados Unidos, Canadá e México é logo ali, em 2026. Dorival Júnior já deu sinais, nos amistosos contra Inglaterra e Espanha, de que seu talento recolocará o time nos trilhos nas Eliminatórias. Se o Brasil for hexa, ele fica.
Mas e se a Seleção ficar no meio do caminho mais uma vez, algo nem um pouco improvável? Aí será a vez do técnico estrangeiro no comando da amarelinha. Em começo de ciclo, carregando o emblema de um fim duplo, o da reserva de mercado e alguns matizes de xenofobia, ainda perceptíveis aqui e ali quando se fala nesse assunto. Para esses, em número cada vez menor, seria uma afronta à pátria o futebol que mais forma e exporta craques no mundo receber ordens de um estranho. Bobagem.
Se o eleito for bom, qual o problema? Felipão treinou Portugal em 2006. O genial Didi comandou o Peru na Copa de 1970. Parreira esteve à frente de Kuwait em 1982, Emirados em 1990 e África do Sul em 2010. Na Europa, é comum seleções serem dirigidas por idiomas até rivais.
Tanto faz se o técnico da Seleção for brasileiro ou estrangeiro. O que importa é ser bom — como Dorival Jr, agora. E Tite, especialmente ele, antes. O que não pode é o senso comum vetar o estrangeiro só por ser estrangeiro. Quando isso acontecer, daremos um passo adiante enquanto país, pelo que o futebol significa em termos de identidade para o povo brasileiro.