Não foram os três gols de Suárez na virada sobre o Botafogo o grande momento tricolor na temporada. Nem Renato, que pela milésima vez apanha nas fases ruins e ressurge mais forte logo a seguir. O instante crucial, que moldou tudo até o que se viu em São Januário, capaz de fazer do Grêmio um candidato ao título, teve Alberto Guerra como ator.
Não falo da contratação do Pistolero, desenhando uma engenharia complexa para pagá-lo. Aí seria muito óbvio. A tacada de mestre foi ter construído uma dívida de gratidão com ele. No momento em que Guerra aceita reduzir o tempo de contrato em um ano para atender a um desejo de Suárez, nesse instante o presidente mudou a vida do Grêmio. Ele queria encerrar a carreira ao lado de um irmão, no caso de Messi. Guerra não apenas entendeu, mas aceitou o pleito de seu craque sem objeções.
Em tempo: nada tem a ver com privilégio, mas recompensa por merecimento. Se a chance de acomodação é zero com Suárez, a inteligência manda deixá-lo o mais feliz possível para o talento resplandecer e contagiar o ambiente.
A felicidade, para Suárez, era a certeza de finalizar uma carreira ímpar ao lado de Messi. Os dois são veteranos. O tempo é cruel. Não dava para esperar 2025. Se não fosse em 2024, talvez não fosse nunca mais. Guerra entendeu isso, em vez de retaliar os arroubos de humor de seu craque.
Que devem tê-lo quase enlouquecido, tantas vezes Luisito o atazanou. Até o joelho passou a incomodar menos. Não o vemos colocando a mão, ao menos. Era teatro, então? Que nada. É mais fácil suportar as dores com alegria. Talvez até se consiga esquecê-las, como parece ter acontecido com o goleador uruguaio.
Suárez está agradecendo a compreensão de Guerra, senhores. Está agradecendo ao Grêmio. E não apenas com gols. Antes das cinco vitórias seguidas completadas contra o colapsado Botafogo, ele já dava exemplo noutro patamar. Houve um período de instabilidade, com três derrotas em cinco jogos. Mesmo sem resultado, era quem mais corria.
É só lembrar do Gre-Nal. O único que nunca aceitou a derrota foi Suárez. É na fase ruim que os grandes mostram o seu tamanho. Você pode aceitar tudo passivamente, como o Botafogo, ou dar o dobro para sair do buraco, como o Grêmio.
Kobe Bryant acordava mais cedo toda vez que tinha derrota significativa, seja no placar ou por errar cestas inaceitáveis para ele. Trocava lamúria por mais treino. Djokovic podia se resignar quando perdia para Federer ou Nadal, mas decidiu mudar até a alimentação para superá-los.
Virada
Números formidáveis — 14 gols e 10 assistências — colocam Suárez na briga pela artilharia do campeonato e na liderança dos passes para gol. Arco e flecha. O 9 e o 10. O centroavante e o armador. Dois em um. É só ver como o rendimento dele melhorou depois que Alberto Guerra transformou o limão em limonada sem pedir nada em troca.
Ao deixar tudo na consciência de Suárez, ganhou seu coração. Em vez considerá-lo traidor ou mal-agradecido por querer abreviar sua história no clube, procurou entender como funciona a cabeça de um gênio. Sem tal definição, haveria outro Suárez.
Marcando gols, sim, mas sem o envolvimento genuíno de agora. Ele já sabe a próxima página a ser escrita com a família e os filhos, ao lado de Messi. O momento da virada não foi em São Januário. Não houvesse outro, em uma sala fechada na Arena, talvez nada disso estivesse acontecendo.
Mas o que está acontecendo, exatamente? Há muitos gigantes como o Grêmio lutando pelo título brasileiro nestas cinco rodadas. Eles também se mobilizam, lutam, convocam torcida e fazem contas. Não se pode ignorar um Palmeiras liderado por Abel Ferreira e Endrick. Nem um Flamengo cheio de estrelas com Tite os hipnotizando no vestiário.
Mas o momento, isso é fato, é todo do Grêmio na reta final do Brasileirão. Um momento que nasceu nos bastidores, quem sabe na intuição do presidente Alberto Guerra, desenhando no coração do Pistoleiro uma dívida de gratidão com o Grêmio.