Do time titular campeão gaúcho de 1954, apenas uma estrela ainda brilha entre nós. É o goleiro Valdir de Morais, 87 anos. Os outros já se foram, certamente para um lugar melhor do que o nosso Brasil. As coisas não andam nada boas por aqui. Mas falemos do Renner, cujos simpatizantes se reúnem neste sábado (27) no bar do Lico, ali na Câncio Gomes.
Arquiteto, Luís Carlos Macchi entrava em campo com o esquadrão quando era criança. Era o mascote. Fez do espaço um memorial com fotos, documentos, camisetas, objetos e farto material sobre aqueles anos incríveis. Vez por outra, quando era possível juntá-los, já que muitos moravam em outros Estados, os craques do passado se reuniam ali.
Aos poucos, as reuniões tornaram-se atos de resistência. O que aconteceu em meados dos anos 1950 no futebol gaúcho não pode ser esquecido. Meu pai admirava muito o Renner. Ele tinha aqueles cards, com fotos em preto e branco pintadas à mão. Abaixo do retrato, a ficha técnica de cada jogador. Abria como se fosse uma sanfona de papel. Eram os cracks.
Iríamos juntos, o pai e eu, a um desses encontros, em 2015. Seria maravilhoso, mas um acidente de carro levou-o apressadamente para onde devem estar agora Bonzo, Ênio Rodrigues, Orlando, Paulistinha, Leo, Ênio Andrade, Pedrinho, Breno, Juarez e Joeci. Gosto de ir aos encontros para imaginar como teria sido o meu pai ali, naquele mundo mágico.
Mas falemos do Renner.
O Renner pôs fim a uma hegemonia de 25 anos Gre-Nal. Naquele ano, não houve sobreviventes. Quem caía no alçapão do Quarto Distrito, o Waterloo da Sertório, em Porto Alegre, estava condenado. Era uma sentença, válida não apenas para o Tiradentes, nome oficial do caldeirão, mas vigente em qualquer estádio da Província de São Pedro.
O futebol gaúcho conheceu um campeão irrepreensível, tipo o City do Guardiola. Ergueu a taça sem deixar um miserável resquício de dúvida sobre quem era o melhor. Foram 15 vitórias e três empates. Não perdeu. Daí o apelido: Papão.
O Renner fechou em 10 de março de 1959, por questões financeiras nunca bem explicadas, vinculadas à fábrica. Era um clube em ascensão. Tinha a alma de um bairro plural. A torcida crescia. Era possível continuar e cavar espaço em meio à massificação Gre-Nal, já em marcha naquela época. Um dos motivos da magia em torno do Renner são as histórias de seus jogadores. Contarei algumas que ouvi deles.
O dentista Sergio Bechelli jogava na base do Renner quando o sonho acabou. Sua memória é capaz de armazenar mais dados do que todas as conversas de procuradores da Lava-Jato que o Intercept reuniu. Ele viu Ênio Andrade treinar cobranças de falta em Valdir, que depois virou lenda no Palmeiras, defendeu a Seleção e inventou a profissão de preparador de goleiros.
Ênio foi um dos maiores armadores do futebol gaúcho. Tricampeão brasileiro como técnico, no comando de Inter, Grêmio e Coritiba, é o ídolo de Tite. Pouco antes da Copa da Suécia, o Renner aplicou 5 a 3 no Santos. Isso mesmo: Santos. Quando o jogo acabou, o atacante Ivo Costa caminhou até um certo adolescente magrelo que aprontara o diabo entre os adultos. Era Pelé, claro. Fez-lhe um afago e disse, intuindo o futuro:
— Vai, moleque. Vai descansar.
Já no Fluminense, Breno Melo foi descoberto ator por acaso, pelo assistente do cineasta francês Marcel Camus, que o viu salvar um senhor de um assalto. Foi assim que o meia-direita do Renner virou protagonista de Orfeu Negro. Baseado na peça teatral Orfeu da Conceição, assinada por Vinicius de Moraes, o filme recriava a mitologia grega no morro carioca. A obra arrebatou a Palma de Ouro em Cannes (1959) e o Globo de Ouro de filme estrangeiro (1960).
Décadas depois, quando visitou o Brasil, o então presidente dos EUA, Barack Obama, perguntou sobre Breno. Orfeu era um dos filmes preferidos de sua mãe, Stanley Ann Dunham. Ela se apaixonou platonicamente por aquele cabeceador com pinta de galã e sorriso largo. A primeira cirurgia de ligamentos de que se tem notícia é obra de Arnaldo da Costa Filho, médico do escrete de 1954, e ainda vivo com mais energia do que uma estação da CEEE.
A história do Renner é de todos nós, além de ser um caso de amor com o realismo fantástico. Não podemos deixá-la morrer. É preciso resistir.