Psicólogos e psiquiatras - ou psiquiatras e psicólogos: eu é que não vou entrar nessa briga por colocar um antes do outro - dizem que não é raro incorporarmos pequenos hábitos de uma grande perda. É como dar uma janelinha na intermediária. A sensação é boa, conforta a torcida, mas os zagueiros e volantes se irritam, rosnam, pensam na desonra e partem para cima.
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Em última instância, matam a jogada ali mesmo, bem antes da grande área. Mas gol mesmo, não sai. Então copiar o jeito de um pai que se foi faz tão pouco tempo, sem que eu ainda consiga andar por aí sozinho, sem a mão dele agarrada à minha e ambas balançando na calçada, se não o traz de volta, ao menos dá uma saudade boa. Suspeito que foi por isso, fundamentalmente, que fui ao churrasco de aniversário do Renner.
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O Renner, como se sabe, pôs fim a uma hegemonia de 25 anos da Dupla Gre-Nal, no Gauchão de 1954. Naquele ano, não houve sobreviventes no alçapão do Quarto Distrito, o Waterloo da Sertório, em Porto Alegre. Não só no Estádio Tiradentes, mas em qualquer outro da Província de São Pedro. Foi um campeão irrepreensível.
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Ergueu a taça invicto, sem deixar um miserável resquício de dúvida sobre quem era o melhor: 15 vitórias e três empates. Daí o apelido eterno: Papão de 54. O Renner fechou em 10 de março de 1959, por questões financeiras nunca bem explicadas. Foi quase um assassinato na alma da cidade. Era um clube em ascensão, com estádio próprio, capaz de fixar espaço no meio da rivalidade Gre-Nal.
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Todos os anos, perto da data de fundação, 27 de julho de 1931, os rennistas se reúnem. É uma resistência. Fui à celebração deste ano a convite do Sergio Bechelli, que jogava na base do Renner quando o sonho acabou e via Ênio Andrade treinando pênaltis e cobranças de falta em Valdir Moraes, o criador da profissão de preparador de goleiros.
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Entre incontáveis atividades (ex-secretário estadual da Saúde é só uma delas), a que importa aqui é o fato de Bechelli ser uma espécie de HD ambulante do Renner. Nomes, datas, lances, cores, cheiros, texturas, ele sabe tudo do alvirrubro.
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Cheguei, portanto, bem recomendado ao bar do Lico, ali na Câncio Gomes. Arquiteto e ex-mascote do Renner, Luís Carlos Macchi fez do espaço um memorial. Gosto de contar histórias, mas adoro mais ainda ouvi-las. O atacante Ivo Costa, 88, revelou como convenceu Ênio Andrade a largar o táxi para ser técnico do Esportivo.
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Seu Ênio não queria, mas o cargo estava vago. O falante Ivo tinha lá seus contatos. Assim começou uma das maiores carreiras de treinador da história do futebol brasileiro, campeão com Inter (1979), Grêmio (1981) e Coritiba (1985).
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Outra deliciosa, também do lúcido Ivo, aconteceu no amistoso contra o Santos, em excursão no Rio Grande do Sul, pouco antes da Copa da Suécia. O Renner ganhou de 5 a 3, mas um certo adolescente, ainda moleque, aprontou o diabo. Ao fim do jogo, maravilhado, Ivo caminhou até Pelé, fez-lhe um afago na cabeça e sorriu, já intuindo o futuro:
- Vai negrinho, vai descansar.
Aristeu, 85, contou-me como um zagueiro podia jogar com os joelhos estourados, no seu caso.
- Eu não tinha os meus, mas os outros, comigo, em seguida não teriam também - disse Aristeu, rindo.
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Claro que era brincadeira. Era? Bem, quando Aristeu tinha chance entre os titulares, o medo se espalhava. E centroavante algum se metia a besta. A história do Renner é assim. Namora como o realismo fantástico. Gabriel García Márquez, se vivo fosse, fartaria-se com inspirações feito Breno Mello, o meia direita que virou astro de cinema.
Já no Fluminense, Breno foi descoberto por um assistente do cineasta francês Marcel Camus ao salvar um pedestre de um assalto, na Praia do Flamengo. Tornou-se protagonista de Orfeu Negro, filme baseado na peça teatral Orfeu da Conceição, assinada por Vinicius de Moraes, que recriava a mitologia grega no morro. A obra arrebatou a Palma de Ouro em Cannes (1959) e o Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro (1960).
Quando visitou o Rio, Barack Obama lembrou de Breno. Orfeu era um dos filmes preferidos de sua mãe, Stanley Ann Dunham, que se apaixonou platonicamente por aquele cabeceador nato. É o Renner de seus sobreviventes entre nós: Paulistinha, Carlitos, Raul Kienemann, Ivo, Valdir de Moraes, Aristeu, Joecy e Arnaldo da Costa Filho, médico mago do primeiro ligamento cruzado que se tem notícia.
Se até na Casa Branca já andou, o Renner há também de trazer meu pai de volta todos os anos, para eu ser um pouco ele e matar um tanto de saudade que não acaba.
*ZHESPORTES