Dia desses, debatíamos no Sala de Redação para onde foi aquela relação mágica que todo cidadão brasileiro tinha com a Seleção. Aí o David Coimbra perguntou, de supetão, com a primazia de quem fala de Boston:
— Quem aí não queria ser uruguaio?
Sabe aquele silêncio avassalador, de quem tocou no ponto fulcral da ferida? Esse. É o talento do David, que acerta até quando dá na trave. Explicarei o porquê. Mantenha-se firme aí.
Comecemos do início, até chegarmos à invasão uruguaia em Porto Alegre, para ver Cavani e Suárez contra o Japão. Concluímos que há razões variadas para esta modorra sobre a Seleção. Uma delas é o resultado. Se ganhamos, viva o suingue que nos faz abençoados por Deus e bonitos por natureza. Se perdemos, somos feios. Especialmente o técnico, que merece a forca. Outra questão é nossa classe dirigente.
Houve um tempo em que a Alemanha era um divisão de infantaria de força e organização. Seus craques exibiam outro perfil. Ninguém há de lembrar de Franz Beckenbauer dando rolinho. Nem de Rummenigge ou Uwe Seeler pedalando antes do gol, e olha que eles fizeram muitos.
Talvez Fritz Walter, o meia que comandou a Alemanha no título de 1954, seja uma exceção, no sentido do talento acima de tudo. Vítima de malária durante a Segunda Guerra Mundial, ele sofria no calor. Mas, quando chovia e fazia frio, como na final contra a Hungria, era cerebral. Chamavam-no "o gênio da chuva".
Décadas depois, à medida que o protagonismo na Europa perdia força, os cartolas alemães decidiram mudar. Eles traçaram um plano de ação para uma década, e dele jamais se afastaram, mesmo com derrotas na largada. Queriam driblar, acertar muitos passes e jogar com bola no chão. Queriam ser brasileiros. O fim da história você conhece: 7 a 1.
Por fim, chegamos ao David. Nossos ídolos, de fato, como diz o David, saem cedo, sem amalgamar vínculos na pátria mãe tão distraída em tenebrosas transações. Seria este o xis da questão?
Firmino era um anônimo quando surgiu na Europa. Neres deixou o São Paulo aos 18, e assim por diante. De fato, isso não é bom. Mas, se o problema para torcer é o êxodo, como explicar os uruguaios? Cavani nunca disputou Libertadores. Fez 30 jogos pelo Danubio e tomou rumo: Palermo, Napoli, PSG. Ainda assim, age e reage como se nunca tivesse cruzado a fronteira oriental. Suárez marcou 12 golzinhos pelo Nacional e se mandou: Ajax, Liverpool, Barça.
Não há registro, a não ser como exceção para confirmar regra, de uruguaio naturalizado vestindo outra camiseta. Ou pedindo dispensa para descansar da temporada na Europa. Óscar Tabarez, 72 anos, que segue à frente da seleção lutando com uma doença autoimune que afeta o sistema nervoso e provoca fraqueza e paralisa, chamada síndrome de Guillain-Barré, esculpiu uma frase sobre a invasão uruguaia na Arena:
— Sem exagero, o que vimos aqui diz muito do que é ser uruguaio.
Suárez veio ao Brasil acima do peso, recuperando-se de lesão no joelho. Dores no pulso o levaram ao Mãe de Deus, mas ele joga como se fosse morrer no minuto seguinte. Laxalt seguiu correndo atrás de Myoshi, mesmo com o músculo aberto. Podia ter parado para não agravar. Eles jogam por orgulho. Não aquele orgulho piegas e falso, nacionalista e nada mais, de só cantar o hino. É um tipo de orgulho que unifica o país, acima de ideologias.
Os jogadores se sentem devedores de sua torcida. Que, por sua vez, nutre o mesmo sentimento em relação a eles. Todos pagam uma dívida pátria ao futebol. O bi olímpico, em 1924 e 1928, apresentou aquele desconhecido cantinho de terra ao mundo. É essa simbiose que mantém acesa a chama Celeste. Não temos isso no Brasil. O problema não é êxodo de craques, e nem a cultura da ostentação de Neymar. O problema somos nós, brasileiros.