As críticas foram tomando forma de avalanche, em tempo recorde e progressão geométrica. Em algum momento dos amistosos da Seleção Brasileira na Europa, contra Panamá e República Tcheca, na semana que passou, Tite teria encaixado a palavra "sinapses" ao dar explicações sobre o não funcionamento de seu time. Até aí, nada de tão grave assim. Todos nós temos cérebros com bilhões de neurônios ligados por sinapses, e dependemos desse emaranhado para cada decisão que tomamos, da caminhada diária automática no parque à fórmula de Bhaskara.
As sinapses são muito democráticas, inclusive. Chatos e intolerantes também as têm. Até os idiotas e maniqueístas, dizem, convivem com elas. Ou elas convivem com eles. O problema é que Tite teria falado algo como "sinapses no terço final", referindo-se a como proceder no ataque, naquela faixa do campo onde as crianças viram adultos e os craques mostram por que são tão diferentes de seus congêneres. Como a figura de linguagem viria após o empate medonho com o Panamá, a pior exibição sob comando do técnico, a gritaria foi geral. Em 48 horas, o caldeirão da internet alimentou e disseminou uma raiva surpreendente contra um sujeito que não faz mal a uma mosca. E que nem é dado a entrevistas polêmicas ou provocativas.
Até colegas jornalistas com credibilidade foram engolfados pela onda das sinapses. Eu mesmo, no Sala de Redação, poderia ter embarcado. Quando íamos tratar do assunto, providencialmente o Duda Garbi lembrou que frase era lenda urbana. O próprio Tite, assustado com a repercussão por abiogênese, já que ele não disse o que disseram que ele disse, foi ouvir de novo suas entrevistas. Na dúvida, melhor conferir. Era tanta gente comentando, compartilhando, analisando e produzindo memes que o Tite deve ter pensado: "Puxa vida, será que falei isso mesmo?".
Só que não. Ele pode ter pronunciado outros termos próprios da análise de desempenho, e nisso talvez valha tentar ser mais claro. Mas não teve nada de sinapse no terço final. Não houve esse exagero. Sobre linguagem específica, é preciso esclarecer. Mesmo que a tradução seja tarefa nossa, dos jornalistas, uma figura pública também tem deveres de comunicação. Um ministro da Economia deixará a tia Maria apavorada se ficar falando em spread bancário a todo instante. E também o repórter que, no microfone, trocar letra maiúscula por "caixa alta".
Quando treinava o Inter, depois da passagem pelo Grêmio, lembro de ter compilado palavras que apareciam em entrevistas de Tite. Tinha torque (arranque), arrastar (passe no chão) e por aí afora. Era divertido. Todos compreendíamos. E, quando não entendíamos, perguntávamos. Jornalista não pode ter preguiça de ir atrás de um termo novo.
No mundo do futebol, quando uma expressão aparece na entrevista, não raro já transita diariamente no vestiário. A análise de desempenho é uma realidade boa, que veio para melhorar o futebol. É natural que jogadores e técnicos a reproduzam. Não faz sentido jornalistas brigarem com ela, assim como os profissionais da bola não devem brigar com a sua parte essencial na tarefa de se comunicar com as pessoas.
Houve um tempo, nos primórdios do século passado, em que zagueiro era beque. Quem falava em zagueiro, possivelmente, era visto como um arrogante metido a besta, aquele sujeito insuportável que se acha o dono das novidades e mais esperto do que a inteligência. Não faz muito, marcação alta era alguém instalando disjuntor de luz no alto de um poste. Hoje, ninguém mais estranha que significa pressionar a saída de bola. Poderíamos dizer apenas "pressão na saída de bola"? Sim. Mas antes havia o center half. Que virou centromédio. Volante, na sequência. Agora, meio-campista. A compreensão do esporte e do mundo ao redor vai se movendo, e com ela surgem novas expressões. Seria melhor, para todos, que lidássemos com mais serenidade com essas transformações.
A saída, para os dois lados do balcão, é perseguir essa medida. Nem tão popularesco que seja simplório, nem tão erudito que ninguém entenda ou sirva de escudo para sair pela tangente. As redes sociais atiraram querosene no fogo a partir de algo que não existiu, uma perversidade infelizmente comum. Produziram labaredas que foram lá no alto e logo desceram, não sem chamuscar Tite. Mas, se as queimaduras não forem de terceiro grau e nos ajudarem a refletir sobre o tema, talvez a crise das sinapses até tenha alguma serventia. Para Tite, para a torcida e para nós, jornalistas.