Eu devia ter sido médico. O problema é que, desde pequeno, queria viver de escrever. Jamais tive dúvidas. E as certezas iam aumentando a cada vez que conquistava algum louro eventual pelo que escrevia, fossem elogios passageiros da família ou dos amigos, fossem vitórias mais concretas. Por exemplo: ganhei alguns concursos literários em nome de outras pessoas e alcancei algumas notas 10 escrevendo redações para colegas de aula. Pequenas fraudes, sei, mas nunca me envergonhei delas. Ao contrário: sentia orgulho.
Um dos concursos que venci foi do curso pré-vestibular Mauá. Com meu texto, consegui bolsa integral do cursinho para uma moça. Mas não posso revelar seu nome, porque ela, de tão honesta que é, até hoje sente vergonha pela nossa burla.
Noutra vez, escrevi um texto que ganhou o primeiro lugar de um concurso literário do CPOR. Mas eu não estava no CPOR, quem venceu foi o meu amigo Serginho Anão, hoje um senhor respeitável, que não usa diminutivos ou apelidos no nome.
Para o Serginho escrevi também uma carta que ele mandou para uma antiga namorada. É que a Lúcia, esse o nome dela, havia mandado uma carta meio estranha para ele. Ela tentou fazer bonito e incorreu num erro que é comum até para escritores veteranos: o pedantismo. Era uma carta toda rebuscada, quase incompreensível. Escrevi uma resposta igualmente rebuscada e o Serginho adorou enviá-la.
Como disse, escrever é divertido.
Então, meu caminho só podia ser esse. Fui ser escrevinhador na vida. Não me tornei médico. Pena. Uma profissão tão bonita... Porque o médico faz uma mágica formidável: ele tira a dor das outras pessoas. Existe algo mais importante do que isso?
Quando você está sentindo dor, qualquer dor, esse fato se torna o centro da sua vida. Você não consegue mais pensar direito, você não consegue mais fazer as coisas que sempre faz, você não consegue sentir prazer. Você só sente dor. Aí vem o médico, descobre o que está causando aquele sofrimento e, com algum remédio ou procedimento, o elimina. Ele conseguiu extirpar aquela maldita dor que o torturava. Você suspira de alívio. E a vida refloresce e o sol brilha como brilha nas Maldivas e os passarinhos cantam e você se sente feliz, feliz. Como dizia Schopenhauer, não canso de repetir, a felicidade é a ausência de dor.
O médico, portanto, é um produtor de felicidade. Mas, generosamente, ele produz a felicidade alheia, não a própria. Ele se preocupa com a dor que o outro está sentindo e trabalha para removê-la.
Há, no Eclesiástico, um capítulo intitulado “Honra o Médico”. Diz assim:
“Honra o médico, porque ele é necessário; foi o Altíssimo quem o criou.
De Deus lhe vem a sabedoria e do rei ele recebe presentes.
A ciência do médico o faz andar de cabeça erguida, e diante dos grandes será louvado.
O Altíssimo faz sair da terra os medicamentos, e o homem sensato não os rejeita”.
Note: “O homem sensato não os rejeita”. E hoje, 2200 anos depois da redação do Eclesiástico, ainda tem gente que duvida da ciência, rejeita as vacinas e prorroga uma pandemia que já devia ter sido extinta.
Triste. Porque essa é uma dor que poderíamos evitar. Várias outras são incontornáveis. Todos sentimos dor, a dor é inevitável. Como dizia Jorge de Lima:
“Dor é vida. Se vivo é porque sofro e sinto.
O primeiro vagido é um hino ao sofrimento.
E o olhar do moribundo é o último lamento.
Ambos vêm do sofrer e têm o mesmo instinto”.
Mas existe socorro, existe a quem recorrer: o médico. O médico não nos livrará da morte, que é certa, mas pode fazer com que nossa vida não tenha dor. Ou tenha menos dor. Como queria poder fazer esse feitiço, como queria ter o poder desse encantamento. Como queria poder, com a minha mão, tirar a sua dor.