David Coimbra

David Coimbra

Colunista de ZH e GZH e comentarista da Rádio Gaúcha, teve 18 livros publicados. Prêmios: 10 ARI, Esso de Reportagem, Direitos Humanos, Habitasul de Literatura, Erico Verissimo de Literatura, Açorianos de Literatura, entre outros. David faleceu em 27 de maio de 2022 após 10 anos de luta contra o câncer. Suas crônicas seguirão disponíveis em GZH.

Cotidiano
Notícia

Pernas inquietas

E agora estou com isso também. Ponho-me a observar minhas pernas durante o dia. Estão sempre em movimento, como se tivessem vontade própria. 

David Coimbra

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Li na internet que existe uma Síndrome das Pernas Inquietas. A pessoa mexe tanto as pernas, o tempo todo, que perde o sono. Acho que peguei isso. Porque simplesmente não consigo dormir, nos últimos dias. É verdade que andei tomando uns corticoides, e corticoide dá insônia, mas, sei lá, o nome desse negócio, Síndrome das Pernas Inquietas, me grudou na cabeça e agora passo os dias lamentando: 

— Maldição! Como minhas pernas estão inquietas! 

O meu amigo Mário Marcos de Souza tinha Síndrome das Pernas Inquietas, é certo que tinha. Ele passava o dia mexendo aquelas pernas, na redação da Zero Hora. Era irritante. O Mário sentado atrás da mesa dele, fazendo um barulho ritmado com as pernas chacoalhando: tum-tum-tum-tum! 

Mas ele não tinha problemas de sono. Ao contrário. Os problemas eram dos que eventualmente dividissem o quarto com ele, como aconteceu comigo na Copa da Alemanha, em 2006. O Mário roncava tanto que eu não conseguia dormir. Era um ronco alto e grave, parecia um motor de trator. Às vezes ele dava uma parada e eu pensava: será que o Mário morreu? Então abria os olhos e ficava observando o Mário em absoluto e preocupante silêncio. Até que ele puxava o ar com sofreguidão e voltava a roncar: RUON! RUON! RUON! Eu não sabia se ficava aliviado por ele estar vivo ou desesperado por eu continuar acordado. 

Agora me ocorre que o Mário talvez roncasse tanto por ter a Síndrome das Pernas Inquietas. Vá saber. 

Um dia, como eu não conseguia dormir mesmo, decidi que ia para o saguão do hotel. Eram cerca de cinco da madrugada, escuro ainda. Tateei pelo tampão do criado-mudo em busca dos meus óculos, achei-os e fui para o banheiro. Lavei o rosto, escovei os dentes, coloquei os óculos e... MEU DEUS! Minha imagem estava toda distorcida no espelho. Lavei o rosto de novo, botei os óculos de novo e... AAAAAAAAAH! Continuava distorcida. O que estava acontecendo com meus olhos? Será que estava ficando cego por causa da falta de sono? Maldito ronco do Mário Marcos! 

Mas aí vi: eu havia tomado os óculos dele sobre o criado-mudo. 

O Mário quase me enlouqueceu naquela Copa. É difícil conviver com quem tem a Síndrome das Pernas Inquietas. 

E agora estou com isso também. Ponho-me a observar minhas pernas durante o dia. Elas andam nervosas mesmo. Estão sempre em movimento, como se tivessem vontade própria. 

Lembro agora que o Felipão dizia que aquele ponta, o Bernard, tinha “alegria nas pernas”. Como se as pernas dele fossem independentes, dançantes, entusiasmadas, ainda que sua personalidade fosse melancólica. Talvez seja algo meio lombrosiano: o corpo revela a alma da pessoa. Um amigo meu diz que mulheres de bunda redonda, empinada e sólida são inescapavelmente ousadas e até perigosas. Já a pequenas de pernas curtas são brabas. Minha avó julgava as pessoas por suas panturrilhas. Panturrilha gorda? É preguiçoso. Não tem erro. 

Eu, minhas pernas sempre foram tranquilas. Hoje estão acometidas dessa súbita inquietude. Será que estou mudando? Será que virá outro eu em 2022? Oh, mundo, por que nunca chegam os tempos de paz? 

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