O Doctor Jeckyll tinha uma cabeça de onça pendurada em cima da escada que levava para o segundo piso da casa. Era exatamente embaixo daquela onça que o Professor Juninho se posicionava. Ele pegava uma cervejinha long neck no bar e ficava ali, com um meio sorriso de Monalisa intrigando quem entrava. Intrigava as mulheres, óbvio. A gente se distraía e, quando voltava a cabeça para conversar com ele, já havia uma moça ao lado, rindo e comentando:
— Ai, Professor...
O Doctor Jeckyll tinha a cerveja mais gelada da cidade e o melhor som. Só clássicos do rock’nd roll. Ficava ali no Largo da Epatur. Às vezes nós saíamos do bar e deparávamos com a feira sendo montada e as donas de casa já se acercando para comprar chicória e couve-flor. Vou dizer: se tem uma coisa de que um noctívago não gosta é de estar na rua quando o sol nasce. É o princípio do Conde Drácula: o sol faz o boêmio derreter. Lembro daquela música belíssima do Chico:
“Eu faço samba e amor até mais tarde
E tenho muito sono de manhã”.
É um hino da boemia. Um diamante. Conta com precisão o que sente o boêmio.
Já fui boêmio. Seria ainda, se a vida não tivesse me empurrado para outro lado, para o lado das manhãs. Mas não lamento. A vida, quando decide que você tem de seguir por um caminho, você obedece, vai sem reclamar e tenta aproveitar a paisagem.
É o que faço. E, fazendo assim, até me esqueço de alguns detalhes de como era naquela época. Imagine que eu não saía da cama antes das 10 horas. Como diz na música do Chico:
“Não sei se preguiçoso ou se covarde
Debaixo do meu cobertor de lã
Eu faço samba e amor até mais tarde
E tenho muito sono de manhã”.
Bem, eu era exclusivamente um jornalista de jornal. Chegava à redação depois do almoço e, antes de começar a trabalhar, ia direto para o bar, tomar um café restaurador. Então, reencontrava meus companheiros da noite, o Juninho, o Ricardo Carle, a Mariana Bertolucci e outros mais. Sentindo a cabeça ainda mareada, nós prometíamos que naquele dia iríamos cedo para casa. Mas aí voltava a entrar em ação o princípio do Conde Drácula: quando o sol se deitava no Guaíba, nós nos assanhávamos:
— Vamos?
— Vamos!
E íamos.
Está certo, éramos jovens. Hoje não teríamos preparo físico para aquelas jornadas. A noite foi perdendo sua força à medida que a idade avançou. Mesmo assim, estava acostumado a tomar chopes cremosos com os amigos, a compartilhar churrascos, a frequentar restaurantes.
Até que a vida empurrou a mim, e a todos os outros bilhões de terráqueos, para outro lado. A vida noturna foi mutilada pela pandemia. E eu, agora, mesmo tendo tomado as duas doses da vacina contra a peste, mesmo estando vivo e bem, eu, agora, sabe o que me aconteceu? Como diria Mario Quintana, “perdi um jeito de sorrir que eu tinha”. Estou desasado, receoso, sem naturalidade para usufruir dos prazeres da noite, ainda que seja uma noite breve.
Novas e agressivas cepas, variantes malvadas, esse vírus não nos deixa em paz. Não voltarei aos meus tempos de viver na madrugada, é claro, isso já passou, mas quero poder beber chopes cremosos com os parceiros sem medo de ser contaminado pelo garçom. Maldito corona! Até quando vai nos aprisionar? Até quando atormentará o mundo? Como perguntou o Chico naquela bela canção:
“Será que é tão difícil amanhecer?”