Ninguém jamais pôde me acusar de covardia gastronômica. Enfrento com denodo as novidades que me são apresentadas à mesa. Entranhas de animais, vegetais de aparência viscosa, podem vir. Não sinto medo. Quando no Exterior, não rejeito pratos típicos, por excêntricos que sejam. Uma vez, na Coreia do Sul, fomos a um restaurante que servia moluscos ainda vivos. O garçom lhes decepava um membro, mergulhava-o em um molho especial e nos dava para comer. Comi e até gostei, mas um dos nossos, um repórter carioca, levantou-se em revolta e, antes de sair marchando do lugar, protestou:
— Vocês queriam que um gigante arrancasse uma perna de vocês e desse para outros comerem?
Considerei a manifestação sensível, mas exagerada, e fui em frente no jantar. Hoje, confesso, daria razão ao repórter carioca. Não gosto de ver seres vivos sofrendo, com exceção de alguns políticos brasileiros. Também evito pratos exóticos em demasia, porque não foram apenas minhas articulações que envelheceram comigo, meu sistema digestivo tem a mesma idade. Assim, procuro respeitar certos limites.
Quer dizer: minha declaração de coragem gastronômica talvez tenha de se restringir aos tempos dourados da juventude, quando até sopa de barbatana de tubarão experimentei e só fraquejei duas vezes: uma, na Itália, provei um bife que me apresentaram num evento e achei o gosto pronunciado demais.
— O que é? — perguntei.
— Carne de cavalo — respondeu o italiano.
Gaúcho que sou, fiquei em estado de choque.
— Bárbaros! — gemi.
O outro vacilo deu-se precisamente em 1990, enquanto cobria a campanha eleitoral ao governo do Estado, como repórter de política. Estávamos em São Lourenço e o candidato Marchezan, pai do ex-prefeito, foi almoçar em um grande ginásio com os apoiadores. Lá, descobri que eles serviriam uma iguaria da culinária local, o “Caldo Lourenciano”. Fui ver o que era e me deparei com alguns homens mexendo, com um cabo de vassoura, um creme verde que borbulhava dentro de um tonel. Escrevi uma crônica a respeito, brincando com a aparência do caldo, classificando-o como temerário, e descrevi a valentia de Marchezan, que comeu, com grande empenho, pelo menos três pratos.
A intenção da crônica era ser apenas divertida, mas parte da população de São Lourenço se enfureceu comigo – eles amam aquele caldo. Hoje, sinto vontade de provar o Caldo Lourenciano, sobretudo nos dias de inverno, mas não sei se fui perdoado pelos lourencianos – os humanos, digo, não os caldos.
Ah, houve ainda a célebre manifestação que as vegetarianas fizeram no lançamento do meu livro “Jogo de Damas”. Na época, eu às vezes gozava das vegetarianas nas minhas crônicas. Na sessão de autógrafos, elas saltaram detrás de pilares e estantes de livros e estenderam faixas e cartazes protestando contra mim. Foi inesperado e engraçado. Quando estava se tornando cansativo para as pessoas que aguardavam dedicatórias na fila, o Zé Antônio Pinheiro Machado cuidou de levar as vegetarianas para outro local.
Relembro disso tudo porque leitores à mancheia reclamaram da minha crônica do fim de semana, em que falo do hambúrguer e do xis. Escrevi que o hambúrguer leva carne moída e os leitores, às dezenas, insistiram: “O xis também!” Até mesmo um especialista, o Zé Pedro Goulart, que escreveu livro a respeito do tema, reclamou com veemência.
Pois reconheço: errei. O xis pode levar carne moída. Mas essa não é sua essência. Sua essência é o pão redondo prensado, o queijo, a maionese e a capacidade de tolerar qualquer recheio, inclusive camarão, o que me parece um disparate.
E, na verdade, há algo ainda mais importante sobre o xis, ou sobre os comedores de xis, como se define o Zé Pedro Goulart. Acerca do que falarei na próxima crônica. Espere um pouquinho.