Quando entro em uma galeria que tem aqui perto de casa, parece que entrei no túnel do tempo. É uma galeria antiga, com escadarias de mármore, paredes de madeira e lojas saídas direto dos anos 1950.
Esse lugar me dá saudade do meu amigo Sérgio Lüdtke. Porque eu e o Sérgio passamos um bom período das nossas vidas em uma galeria semelhante, no prédio que era sede da Livraria Sulina, na esquina da Borges com a Demétrio.
Foi uma época divertida. Conheci pessoas interessantes. Além de escritores, editores e professores, muitos de nossos colegas eram personagens impagáveis. Na nossa sala trabalhava um jornalista veterano que, na verdade, não trabalhava. Ele ia lá às vezes, sentava-se atrás da máquina de escrever e, não raro, dormia na cadeira. Não era demitido porque tinha uma larga história na empresa e o dono, o Leopoldo Boeck, era um homem de lealdades. Mesmo assim, se o pegasse cochilando, o Leopoldo aproveitava para sacanear: enrolava um jornal e dava uma violenta pancada na mesa. O velho jornalista levava o maior susto, saltava da cadeira e o Leopoldo, gargalhando, convidava-o para tomar um café.
O povo brasileiro perdeu muito ao abandonar o hábito do café da tarde – perdeu em nutrição, sim, mas bem mais em convivência.
Eu e o Sérgio tomávamos vários cafés durante o dia, aliás. O mais importante era o clássico café da tarde: íamos à lanchonete da dona Maria e pedíamos uma média com pão que ela mesma preparava, uma delícia. O povo brasileiro perdeu muito ao abandonar o hábito do café da tarde – perdeu em nutrição, sim, mas bem mais em convivência. A pausa para o café da tarde servia para distensionar. Hoje, em vez de ir à lanchonete da dona Maria, as pessoas vão para o Twitter.
Uma vez, foi contratada para o nosso departamento uma moça, uma morena que, nossa!, ela porejava sexo. Não era uma beleza agressiva, era uma sensualidade macia, meio preguiçosa. Uma dessas morenas douradas, sabe como é? Seus olhos eram amendoados, com um brilho de malícia infantil que perturbava os homens. Ela sabia que exercia esse poder e gostava de se valer disso. Acabamos nos tornando amigos e ela me contava o que fazia com seus apaixonados. Foi então que aprendi que uma mulher muito bonita pode ser muito, muito cruel.
Uma vez, um importante editor do centro do país foi passar uma semana em Porto Alegre, a negócios. Ele chegou ao nosso departamento e viu a moça. Conversou com ela por cinco minutos, não mais. Foi o que bastou para ficar enfeitiçado. A partir daquele momento, começou a cercá-la. Mandava-lhe flores, presentes, doces, e ela só negaceando. Depois de dias de jogo, ela finalmente aceitou sair com ele. Jantaram em um restaurante caro e tal. De madrugada, ela topou ir até o cinco estrelas em que ele estava hospedado. Subiu ao quarto. Eles trocaram breves carícias. Ela levou a mão ao cinto dele. Abriu a fivela. Baixou-lhe as calças até os joelhos. E começou a rir. Apontava para o membro do coitado, ria e dizia:
– Desculpa, mas ele é tão pequeninho…
Claro que nada aconteceu naquela noite, nem jamais. O poderoso empresário voltou para casa sentindo-se nada poderoso.
Era má, a minha amiga.
Mas no final da galeria havia uma amiga boazinha. A dona Edith, ninguém menos do que a mãe do presidente, fundadora da empresa. Dona Edith era amada por todos. Eu às vezes ia à salinha dela e ficava fazendo perguntas sobre o passado da livraria. Ela, surpreendentemente, dava importância ao pirralho que eu era e respondia com paciência e doçura.
Dona Edith me salvou inúmeras vezes. É que, às sextas-feiras, a Sulina dava vales – nós podíamos pegar adiantado um determinado percentual do salário. Eu pegava todas as semanas. Gastava tudo em três dias e, na sexta seguinte, lá estava eu, no Departamento Pessoal, implorando por outro vale. Meus adiantamentos foram aumentando de valor, até que, um dia, recebi só uma moedinha de salário. Aí, o horror!, a direção da empresa me proibiu de tomar novos empréstimos. Só que a Dona Edith era A DONA e gostava de mim. Assim, eu escorregava até a salinha dela e miava:
– Dona Edith, será que a senhora me consegue um valezinho para tornar o meu fim de semana feliz?
Ela assinava o vale e eu ia vitorioso para o DP.
Depois que saí da Sulina, não vi mais a dona Edith. E agora, numa sexta-feira de 2019, entrei nessa galeria aqui dos Estados Unidos e, já ao passar pela primeira loja, lembrei-me do Sérgio Lüdtke. Continuei caminhando e, logo a seguir, parei em frente a uma sapataria e recordei de outra pessoa importante para mim, o meu avô, que era sapateiro. Mais um pouco e deparei com o relojoeiro, um chinês. Ele estava debruçado sobre um relógio no qual operava uma minúscula chave de fenda. Nunca vi esse chinês de cabeça levantada. Nunca. E, no fim da galeria, havia uma salinha de escritório meio escura. Olhei lá dentro e, atrás de uma mesa, vi uma senhora de cabelos brancos. Ela ergueu os olhos e me fitou. Abri a boca de espanto: era a dona Edith! Não a própria, óbvio, mas uma pessoa muito parecida. Ela, me vendo ali parado, sorriu, simpática. Sorri de volta. E segui meu caminho, pensando na coincidência: a dona Edith me socorria sempre às sextas e aquele dia era uma sexta… Estaquei. Tive vontade de voltar e conversar com ela. Mas não havia o que lhe dizer, ela não entenderia a abordagem. Em todo caso, fiquei contente. O sorriso daquela senhora americana, afinal, foi o valezinho que tornou o meu fim de semana feliz. O povo brasileiro perdeu muito ao abandonar o hábito do café da tarde – perdeu em nutrição, sim, mas bem mais em convivência.