Às vezes, caminho por um lugar comum, um lugar qualquer desta esquina do norte do mundo, e parece que entrei no túnel do tempo. Sábado à noite, por exemplo, flanava distraído por uma rua de Falmouth, vilarejo de Cape Cod, e vi algo que achava ser impossível no século 21.
Foi a música que me chamou a atenção. Flutuava de dentro de um salão de baile e era tocada, do alto de um palco, por uma orquestra formada por homens de cabelos brancos. No chão de tábuas de madeira, casais rodopiavam coordenadamente. Era, descobri depois, o que eles chamam de “contra dance”, dança meio parecida com as quadrilhas de São João, com troca de pares e movimentos ensaiados. Todos os sábados, eles praticam essa dança, em Falmouth, como se estivessem no século retrasado.
No mesmo dia, pela manhã, quase em frente ao salão, testemunhei outra cena que parecia ter sido recortada de um filme dos anos 1950: crianças, sentadas em banquinhos, vendiam seus brinquedos usados, expostos em toalhas estendidas na grama de uma praça. Eram dezenas de crianças e adolescentes. Alguns também vendiam copos de limonada ou gibis velhos. Tentei imaginar um guri brasileiro de 12 ou 14 anos de idade fazendo o mesmo. Não teria como. Nosso cinismo contaminou as nossas crianças.
Bem, estou falando de um lugarejo de Massachusetts, mas mesmo em Boston há comunidades que se assemelham à Porto Alegre dos anos 1970, quando eu e meus amigos saíamos para brincar e nossos pais não tinham ideia de onde andávamos. Isso me fez pensar em uma angústia da atualidade: o desejo de voltar ao passado.
O próprio Bolsonaro expressou essa espécie de projeto na campanha eleitoral. Disse que seu objetivo é fazer o Brasil se tornar o que era há 40 ou 50 anos. Não deixa de ser uma utopia, tanto quanto a que move as esquerdas. A diferença é que a fantasia das esquerdas se baseia em um futuro que não acontecerá e a das direitas em um passado que não voltará a acontecer.
As esquerdas sonham em transformar o Brasil em uma grande Islândia tropical, com perfeição, igualdade e passe livre. As direitas sonham com o retorno a um passado mítico, a tempos dourados que, na verdade, só existem na imaginação de quem suspira por eles. Ou em alguns pedaços privilegiados do planeta, como em certos nacos da Nova Inglaterra.
De certa forma, ambos, direita e esquerda, querem o mesmo: a Islândia não é muito diferente de Falmouth. O que faz cogitar: por que Islândia e Falmouth são possíveis? E o mais importante: seriam possíveis também no Brasil.
Precisamos de dinheiro. Se o Brasil vencer o preconceito contra o dinheiro, até utopias serão possíveis.
Afirmo que sim.
O Brasil poderia ter Islândias e Falmouths em seu território. Bastaria que o país fosse de fato uma federação e que os municípios tivessem de fato autonomia. Que as comunidades pudessem realmente escolher o tipo de vida que querem ter.
Há quem argumente que a criação de ilhas de prosperidade criaria também ilhas de miséria. É um erro. Riqueza atrai riqueza. Mesmo quando poucos gastam muito, todos ganham. Quando ninguém gasta nada, ninguém ganha. Dinheiro. Precisamos de dinheiro. Se o Brasil vencer o preconceito contra o dinheiro, até utopias serão possíveis.