Fiquei tão impressionado, que sonhei a noite inteira com uma entrevista que o Pedro Bial fez na terça passada. Ele conversou com Nilton Claudino, ex-repórter fotográfico do jornal O Dia, do Rio. Em 2008, Claudino foi torturado pelas milícias cariocas, e isso mudou-lhe a vida para sempre. Claudino diz que, depois da tortura, tornou-se um morto-vivo. Não é exagero, e já conto por quê.
A desventura de Claudino começou quando ele decidiu fazer uma reportagem investigativa em uma das regiões dominadas pela milícia. Ele escolheu a repórter que o acompanharia e os dois se infiltraram na favela dizendo que eram casados e que vinham de fora do Estado. Passaram duas semanas em uma casinha alugada, convivendo com a comunidade, até que foram descobertos. Então, policiais fardados e à paisana os levaram para o que Claudino chamou de “casa da tortura”. Lá, eles foram seviciados brutalmente durante sete horas e meia.
Claudino contou que, durante a tortura, seus algozes repetiam que ele nunca mais seria o mesmo.
– E era verdade – reconheceu.
Foi precisamente isso que me espantou. Vi, na entrevista com o Bial, um homem de espírito fraturado. Claudino hoje é um farrapo emocional. Ele chorou várias vezes em meio à conversa e, a certa altura, admitiu que todos os dias pensa em cometer suicídio. Só não o faz por causa dos filhos.
A tortura ocorreu há 11 anos, fisicamente Claudino parece recuperado e é improvável que seus verdugos o capturem outra vez, até porque ele abandonou a profissão, não representa mais uma ameaça. O que leva à questão: por que Claudino não conseguiu reintegrar a alma? Por que os torturadores estavam certos quando previram que ele nunca mais seria o mesmo?
Respondo: porque, agora, Claudino sente medo. Agora, ele sabe que coisas horríveis podem acontecer.
Ele próprio relatou que, antes, adorava fazer matérias de risco por ser “viciado no perigo”. Não é o único. Mas quem é viciado no perigo obviamente só o é porque o perigo não se realiza. Ou seja: a pessoa passa pelo perigo e sai intacta, como se estivesse numa montanha-russa ou num trem-fantasma. Desta forma, o perigo produz sensação oposta à ameaça que representa: produz sensação de fortaleza, de imortalidade. A pessoa se sente mais confiante. Foi essa confiança que Claudino perdeu para sempre. A sensação de desamparo é o que o desespera e o faz se sentir meio morto.
A experiência de Claudino foi traumática, abalaria qualquer um. Mas não é preciso tanto para acionar a chave que dá o sinal de alerta na cabeça das pessoas. Pode ser algo de aparência trivial: um chefe que persegue o funcionário, uma separação, uma perda de emprego, um acidente, uma desilusão. É algo que leva a pessoa a concluir que nem a fama nem o dinheiro nem a beleza e nem uma vida correta são capazes de proteger quem quer que seja dos males da existência ou da maldade humana.
O mundo de hoje tem ainda outra característica que aumenta essa terrível impressão de abandono: no mundo de hoje, falta Deus. Não estou falando do aspecto transcendental, estou falando do aspecto psicológico. A religião, que Freud dizia ser uma ilusão, por envolver fé e desejo, a religião dá consolo ao crente. O homem religioso tem certeza de que o Bem vencerá o Mal, nem que seja depois da morte. Hoje, porém, as pessoas são mais céticas. Em nome da razão, muitos não acreditam em Deus. E a vida sem Deus é solitária.
O espaço se foi e ainda não cheguei ao ponto que queria. Ainda vou dizer o que é importante: que há saída. Não desanime, crente ou ateu. Há saída.