O nome dela é Cecilia. Não é uma mulher, é um champanhe italiano que eu levava no colo, no banco do trem. Custou-me só US$ 8 no Trader Joe’s, mas, acredite, trata-se de ótimo champanhe. Uma vez, servi-o a um amigo francês que mora aqui, o Robert. Ele é muito exigente em matéria de comida e bebida. Francês, sabe como é. Pois, quando o Robert provou o primeiro gole de Cecilia, fez mmm e exclamou:
– Good!
Pensei até que fosse sair um “ulalá!”.
Então, estava feliz com minha Cecilia, quando ela entrou no trem. Não era uma bebida, era uma mulher e usava um vestido curtíssimo que deixava à mostra um par de pernas que, de relance, achei que fossem simplesmente per-fei-tas.
Pelo menos foi o que achei.
Devo ressaltar que as mulheres daqui gostam de expor as pernas logo que os dias se tornam um pouco mais quentes. Elas entram em minissaias sumárias e shortinhos minúsculos. Algumas, sobretudo as orientais, saem por aí com as pernas de fora mesmo quando está frio. A propósito: as orientais têm pernas realmente bonitas.
Essa que entrou no trem não era oriental, suponho que fosse americana. Ela se acomodou no banco exatamente em frente ao meu, um daqueles bancos que ficam virados para o corredor. Assim, podia ver suas pernas, agora cruzadas. Mas não olhei. Ficava chato olhar. Ela podia se sentir ofendida. Além disso, tinha um cara ao lado dela, talvez marido ou namorado.
Tem outra coisa: os americanos prezam muito sua privacidade. Ninguém olha para ninguém na rua. Se você vem caminhando e, por acaso, olha nos olhos da outra pessoa, ela sorri e cumprimenta. É uma maneira educada de dizer: “Eu vi que você está olhando para mim. Estou lhe dando a chance de tornar isso natural: você me cumprimenta, eu o cumprimento e nós vamos embora, cada um para o seu lado”.
Claro, isso nas cidades pequenas, americanas de raiz, não numa capital do mundo, como Nova York. Em Nova York, eles ignoram olhares, e pronto. Em Londres é assim também. Você fica de pé, no metrô lotado, cercado de gente e ninguém encara ninguém. É um espanto: você está a um palmo do rosto da outra pessoa. Se você quisesse, poderia dar-lhe uma dentada no nariz. Mas ela consegue fitar o vazio como se você fosse transparente. Como eles conseguem?
Portanto, é feio encarar os outros nos Estados Unidos e mais feio ainda lamber as pernas de uma moça com o olhar. Além disso, pode ser perigoso. Vá que ela considere assédio.
Lembrei do caso de um brasileiro em Tóquio que viu uma linda japonesa na rua e resolveu ir atrás só para admirá-la um pouco mais. O problema é que ela percebeu e chamou um policial:
– Seu guarda, aquele homem está me seguindo.
O policial interpelou o brasileiro:
– O senhor está seguindo a moça?
– De jeito nenhum! Só estou procurando o trem.
– Trem? Para onde o senhor vai?
O brasileiro disse o nome de uma cidade qualquer e o policial, solícito, fez questão de levá-lo até a estação, ajudou-o a comprar a passagem e esperou até que ele entrasse no vagão.
Mas, confesso, sentia uma ENORME vontade de olhar para aquelas pernas
Assim, nada de olhar para as pernas da americana, ainda que elas tivessem chance de ser simplesmente per-fei-tas. Mas, confesso, sentia uma ENORME vontade de olhar para aquelas pernas. Deu-me uma ânsia, uma aflição, como se eu PRECISASSE olhar. Por que isso? Por que o homem TEM de olhar para uma mulher linda quando ela passa? Um amigo meu diz que, quando a gente faz isso, “bota os olhos a pastar”, e ele tem razão. É como se a olhada nos alimentasse. Eu ali, diante daquelas pernas nuas que se me ofereciam, eu ali sentia que ia morrer de fome, se não olhasse. Mas não olharia! Tinha de ser civilizado, afinal.
Lembrei do Chico: “Eu olho as pernas de louça da moça e não posso pegar…”.
Feliz do Chico. Eu nem olhar podia.
Continuei mirando o nada pela janela. Fixei-me em um ponto neutro, acima das cabeças do casal. Aí o trem ingressou em um túnel e só o que havia para ver eram paredes. Virei a cabeça para os lados. Será que os outros passageiros tinham reparado nas pernas? Havia algumas pessoas de pé. Todos indiferentes. Americanos! Se houvesse um brasileiro entre nós, é claro que ele daria uma espiadela. Talvez até trocasse um olhar cúmplice comigo, como se dissesse:
– Você viu???
É bom quando acontece isso, porque partilhamos uma visão agradável, como quem divide uma comida deliciosa. Mas, ali, ninguém se solidarizaria comigo se, por acaso, desse UMA BOA OLHADA naquelas pernas. Não. NÃO! Eu não poderia olhar.
Mantive-me assim, casto, puro, um bispo, até que o trem saiu do túnel e fui mirar de novo o nada e notei que eles olhavam para mim. Sim. Eles. O casal. Aí olhei nos olhos dela e ela… Ela sorria!
Aquilo me perturbou. Por que ela sorria? Então, ela ergueu o braço e apontou o dedo para o meu colo.
– Cecilia? – perguntou.
O champanhe! Sorri de volta.
– Cecilia – confirmei, e estendi a garrafa em sua direção. – Quer ver?
Nesse momento lindo, como diria o Rei, deu-se o seguinte: enquanto meus braços se alongavam para ela, com a garrafa nas mãos, baixei a cabeça, como numa reverência, e estiquei o olhar para… para… PARA AQUELAS PERNAS!
Foi tudo muito rápido, um átimo de segundo, ela logo agradeceu e recusou a garrafa, mas foi o suficiente. Eu olhei. Olhei mesmo. Olhei com vontade. Podem me condenar, mas olhei. E, sem vergonha do crime, digo: fiquei feliz. Porque eram pernas simplesmente per-fei-tas.