O Batman come Dunkin’ Donuts todos os dias. Dunkin’ Donuts é uma franquia de café que vende uma espécie de sonho pequeno, pouco maior do que um botão puxador de três camadas. É barato, custa um dólar. Eles se instalaram em Porto Alegre, tempos atrás, mas, após alguns anos, saíram da cidade para nunca mais voltar. O Dunkin’ é daqui, de Massachusetts, assim como o Batman. Ou, pelo menos, como o ator que interpreta o Batman, o Ben Affleck.
Ben Affleck diz que o fato de comer Dunkin’ Donuts todos os dias o faz se sentir mais próximo de Boston, embora agora esteja vivendo na Califórnia. Ou seja: o Dunkin’ Donuts tem um valor sentimental para ele. Quando Batman dá uma dentada num donuts e o recheio se lhe escorre pelos dentes, certamente ele sente o gosto da infância.
Como é doce o gosto da infância
Foi o que me capturou ao ler a notícia: o sabor da infância. Eu, quando pequeno, havia uma comida que dizia poder comer todos os dias: batata frita. Minha mãe não fazia batata frita com frequência, porque precisava usar grande quantidade de azeite na fritura, e o azeite era caro. Então, os dias em que ela botava um prato de batatas fritas na nossa frente eram especiais. Eram umas batatinhas gordas, crocantes por fora e macias por dentro. Eu e meus irmãos as partilhávamos como se fossem moedas: uma pra mim, uma pra ti, uma pra ti; duas pra mim, duas pra ti, duas pra ti. Era contadinha, a divisão. Um dia afirmei:
– Eu comeria batata frita todos os dias!
Minha irmã apertou os lábios:
– Ninguém come batata frita todos os dias. É muito caro!
Tive de concordar. Ninguém seria perdulário de fazer tamanho gasto todos os dias.
Outra comida pela qual tínhamos fetiche era o camarão, esse, sim, muitíssimo mais caro do que a batata frita. Dia de camarão era dia de festa. Mas comíamos com certo respeito, porque, no passado, ocorrera um terrível incidente na família envolvendo o camarão. É que meu avô havia contraído tifo numa época em que isso era sentença de morte. Ele, porém, se recuperou, e a minha avó, para comemorar, fez arroz com camarão. Minha avó era a melhor cozinheira da cidade. Meu avô gostou tanto, comeu tanto daquele arroz com camarão, que teve uma recaída. Em sua segunda recuperação, minha avó serviu uma inócua canja de galinha.
Ah, e agora chego à terceira comida que marcou minha infância: o frango assado, chamado “frango de televisão de cachorro”. É aquele frango dourado, cheiroso, luminoso, acompanhado de polenta, que fica rodando no espeto. Aos domingos, quando íamos almoçar na casa do meu avô, minha mãe dizia para mim e para meus irmãos:
– Caminhem olhando para o chão. Se acharmos cinco cruzeiros, vamos comprar frango assado.
Nunca achamos.
Hoje, era para eu ser um adepto de frangos assados, mas não sou. O frango assado não me faz sentir o gosto da infância, nem o camarão e nem a batata frita. A infância, para mim, ressurge… quando corto uma fatia de pão. É estranhamente trivial, mas é isso mesmo. Quando tomo o pão com a mão esquerda e, com a direita, assesto a faca serrilhada para cortá-lo, lembro-me da minha mãe mandando:
– Vai lá na vendinha e traz meio quilo de pão semolina e um litro de leite.
Ela queria preparar o café da tarde. Eu, então, deixava a contragosto a brincadeira da qual estivesse me ocupando e ia. No caminho, encontrava um amigo ou dois e me detinha conversando. Houve dias, vários, em que deixei o pão e o leite em cima de uma pedra e entrei na peladinha que era disputada no areão ao lado da venda. E não raro fiz um pequeno desvio para me pôr debaixo da janela de Sândi, a loirinha de olhos azuis que morava no térreo do prédio do meu amigo Amilton Cavalo. Jogava uma pedrinha no vidro da janela, ela aparecia sorridente e eu:
– Oi, gatchinha…
Quando chegava em casa, sempre levava um xingão da mãe, por causa do atraso. Não me importava, estava feliz. Aí, a mãe botava o leite para ferver e fatiava o pão, exatamente como faço agora e, agora, é dela que me lembro e dos meus antigos amigos e da loirinha Sândi e de tardes vadias no IAPI, o bairro da minha infância, como é doce o gosto da infância.