Não bastassem as tragédias e tragicomédias que devassam o Brasil todas as semanas, o próximo ano nos reservará um drama bíblico, talvez o maior deles: Jair, o pai, oferecerá o filho Flávio em holocausto? No Gênesis, Abraão, o grave patriarca das três religiões monoteístas, não hesitou: a uma única ordem de Jeová, sem nem discussão, levou seu único filho, Isaac, para o alto do monte do sacrifício, amarrou-o a uma pedra fria, ergueu a faca para executá-lo e, quando já ia descer a mão, o anjo do Senhor gritou do céu:
– Abraão! Abraão!
E o deteve.
Fornecer esclarecimentos sobre o que aconteceu no gabinete do seu filho é uma exigência incontornável para Bolsonaro. Ele tem de falar.
Tudo não passava de uma pegadinha de Jeová, que queria saber se Abraão era obediente de fato. Cá para nós: uma sacanagem do Senhor. Isso não se faz. Eu, inclusive, rodaria no teste.
E Bolsonaro, como se comportará?
O filho dele, Flávio, cometeu algum ilícito. Há indícios robustos de que foram cometidas ilicitudes na relação dele com seus assessores. Ainda não se sabe se é algo grande ou pequeno, se é grave ou não, mas que fez, fez.
Tudo tem de ser muito bem esclarecido. Só que não foi. Ninguém encontra o assessor que tem movimentações estranhas em sua conta bancária e a família Bolsonaro é reticente quando toca no assunto.
Ora, isso é que não pode ser. Bolsonaro foi eleito presidente menos pelas qualidades que têm do que pelos defeitos que não têm. Para suas dezenas de milhões de eleitores, Bolsonaro não é desonesto e não integra a casta política brasileira que se movimenta basicamente pelos valores da social-democracia. Ideologicamente, e mesmo na prática, não há muita diferença entre os maiores partidos políticos brasileiros. PT, PSDB, PMDB, PDT, todos são parecidos, com discordâncias quase irrelevantes a respeito de pontos específicos, como a extensão das privatizações. Bolsonaro, em tese, romperia com essa lógica. Seria uma nova ideia de país.
Se é uma mudança boa ou ruim, isso cabe à posteridade decidir e à análise particular de cada brasileiro. A questão é que a principal ideia da candidatura de Bolsonaro é a intransigência com o que está errado. Ou, pelo menos, com o que ele acha estar errado.
Considerando esse fundamento, fornecer esclarecimentos abundantes e definitivos sobre o que aconteceu no gabinete do seu filho é uma exigência incontornável para Bolsonaro. Ele tem de falar. E mais: tem de se expor aos questionamentos da imprensa livre, como se dá em qualquer democracia séria. Usar as redes sociais para fazer comunicados unilaterais não é suficiente para quem almeja ser presidente "de todos os brasileiros", como ele vive a repetir.
Como Abraão teve de provar sua lealdade a Jeová, Bolsonaro terá de provar sua lealdade ao povo. Nem que, para isso, precise sacrificar o próprio filho.