Faz tempo isso, isso é do tempo em que uma garrafinha de água mineral custava um real. Repoltreávamo-nos nas areias macias da Praia Brava e vimos que lá de longe vinha aquele vendedor ambulante carregando duas grandes caixas de isopor a tiracolo. Era um homem negro de cabelos brancos, e por aí você já pode avaliar sua idade provecta. O Renatinho Dornelles gosta de dizer:
– Negro, quando o cabelo pinta, três vezes trinta.
O que não pode ser medido objetivamente em moeda corrente tem pouco valor no Brasil. Por que teria um museu?
Mas é claro que ele não tinha 90 anos. Devia ter 70, o que já era suficiente para fazer com que as caixas de isopor lhe pesassem toneladas. O Degô o chamou e pediu uma água. O homem descansou as caixas na areia e retirou, de uma delas, uma garrafinha gelada. Enquanto isso, o Degô ficou se apalpando.
– Ih… – lamentou. – Será que esqueci meu dinheiro?
Nós já íamos pagar para ele, quando o vendedor se agachou e colheu, detrás de uma das caixas, um taludo maço de notas.
– Acho que o seu dinheiro caiu – disse, estendendo o maço para o Degô.
Ficamos admirados. Naquele bolinho de reais, certamente havia mais do que ele ganharia com um mês de trabalho árduo. Ele poderia ter pego dissimuladamente o maço, ninguém perceberia, mas o estava devolvendo. Encantado com a honestidade do vendedor, o Degô puxou uma nota de 10 e a ofereceu em recompensa. O homem sacudiu a cabeça, recusando:
– O dinheiro não é meu; é seu.
– Então – propôs o Degô – pago dois reais por uma garrafinha de água.
O homem balançou a cabeça de novo:
– A água custa um real. Se o senhor quiser me dar dois reais, leve duas garrafinhas.
Compramos, todos, várias garrafinhas.
De onde viera aquela retidão? Me diga.
Antes, digo eu: valores.
Aquele velho e cansado trabalhador movia-se por valores imateriais muito superiores aos materiais. Sua espinha dorsal era feita de outro aço.
Essa história aconteceu há uns 20 anos, e nunca mais a esqueci. Porque esse tipo de brasileiro é raro. O brasileiro, em geral, o que o move é o dinheiro. A felicidade é medida pelo tamanho da conta bancária, o importante é quanto se ganha. Se o empregado ganha bem, talvez trabalhe bem. Se o empresário tiver bom lucro, talvez forneça bom produto. Não existe o prazer do trabalho benfeito ou de produzir algo de alta qualidade; existe o prazer do ganho. Não existe o orgulho de fazer um trabalho que agrade ao outro; existe a ganância de conquistar algo para si.
Por isso, o que não pode ser medido objetivamente em moeda corrente tem pouco valor no Brasil. Por que teria um museu? Não foi por acaso que ardeu o Museu Nacional. Não é por acaso que, no Brasil, prédios são pichados e aparelhos públicos são depredados, não é por acaso que as escolas estatais são de má qualidade, que as filas são imensas, que os ônibus são superlotados, que as calçadas estão quebradas e que qualquer grupo fecha uma rua por qualquer motivo, pouco ligando se outros cidadãos têm compromissos a cumprir. Nada disso importa. O que importa, para cada um, é o que cada um quer e o que cada um ganha. Não somos como aquele herói da Praia Brava. Somos um país de muquiranas. Merecemos o fogo que consumiu o museu.