Mário Barbará, que morreu nesta quarta-feira, simbolizava uma era: a era dos festivais da canção do Rio Grande do Sul.
Alguns dos maiores clássicos da música gaúcha, como Esquilador, Negro da Gaita, Guri e Veterano, foram forjados a costela gorda e mate amargo na Califórnia de Uruguaiana, o maior dos festivais.
Eu tinha discos desses festivais, e os tenho ainda, biscoitos finos de vinil de que cuidava com esmero de colecionador. Nós cantávamos aquelas canções nos bares e nas rodas de violão.
Talvez você ache que a velha pujança musical gaúcha só tem significado para a classe artística. Se achar, acha errado. O vigor da arte de uma sociedade é proporcional ao vigor da própria sociedade.
Tome outra área das artes: a literatura. Naquele tempo dos festivais, a Feira do Livro de Porto Alegre chegou ao seu apogeu. A lista dos mais vendidos da feira era aguardada com ansiedade palpitante por autores, editores e leitores. Estar nela era um galardão. Muitos dos escritores que foram campeões da feira estouraram como sucesso em todo o Brasil. Um deles: Luis Fernando Verissimo, que, em 1975, lançou um dos melhores livros já escritos no Brasil, O Analista de Bagé.
O Ivan Pinheiro Machado e o Paulo Lima, editores da L&PM, já me contaram mais de uma vez como o triunfo do Analista na feira chamou a atenção do resto do país e como eles usaram o prestígio regional para transformar aquele belo livro em best-seller nacional.
Naquela época, as livrarias Sulina e Globo, ambas gaúchas, concorriam ferozmente pelo gordo mercado do Sul. A Sulina, onde trabalhei, chegou a ter 24 filiais. Algumas, como a matriz da Borges de Medeiros, eram mais bem fornidas do que qualquer loja que encontro hoje em Boston, cidade que se jacta de ser o centro (The Hub, eles dizem) cultural dos Estados Unidos.
Nós viajávamos de trem para ir aos festivais. Uma vez, para assistir a uma tertúlia, reunimos uma brava turma da Famecos e embarcamos na segunda classe de um trem de passageiros, que sacolejou alegremente durante a noite, nos deixando em Santa Maria ao raiar do dia. Mas, se tivéssemos disposição e dinheiro para uma viagem mais luxuosa, havia opção: o trem húngaro era veloz e confortável, além de ser mais seguro e mais pontual do que qualquer ônibus.
O vigor da arte de uma sociedade é proporcional ao vigor da própria sociedade.
Agora, ando de trem quando vou de Boston a Nova York, e sempre que vou penso no trem húngaro do Rio Grande, e sempre que penso lamento: o que aconteceu conosco?
Repito: o que aconteceu? Decaímos, de lá para cá. Na economia, na cultura, na relação das pessoas com a cidade.
Tenho, cá para mim, que a peçonha da disputa ideológica se infiltrou em nossas veias e nos tornou inimigos fraternais. Hoje, quem discorda não é que tenha opinião diferente: é que é canalha. E você não se acerta com canalhas, não negocia com eles e, o mais grave, não constrói nada ao lado deles.
Tínhamos de nos limpar do bafio da ideologia. Ou a profecia de Mário Barbará vai se cumprir: o que foi nunca mais será.