Minha amiga Neca Barreto contou que perto da casa dela há um homem que mora dentro de um contêiner de lixo. As pessoas atiram sacos pretos cheios de detritos para dentro do contêiner e ele joga tudo para fora de novo. A Neca, tocada pela compaixão, evita colocar lixo ali.
É óbvio que as autoridades têm de retirá-lo do contêiner , mas não é uma tristeza saber que há homens tão miseráveis, que não podem morar nem dentro de uma lata de lixo?
A pobreza cria dilemas éticos quase impossíveis de resolver. Pouco tempo atrás, invasores foram despejados de um prédio no centro de Porto Alegre. Era uma determinação legal, aquilo tinha de ser feito, até porque o respeito à propriedade privada é a base do sistema, mas a cena de mães vagando ao relento, sem saber como proteger os filhos do frio da noite de inverno, foi de abalar convicções jurídicas.
Outra: Porto Alegre tinha 8 mil carroceiros. Um anacronismo. Nenhum lugar civilizado pode ter carroças embretando o trânsito, a circulação fácil é fundamental para a saúde de uma cidade, mas era assim que esses 8 mil homens mantinham a si e às suas famílias. Eles não estavam fazendo nada de errado; estavam trabalhando. É lícito a cidade lhes suprimir o sustento em nome da fluência do trânsito ou em nome de seja lá o que for? As autoridades, na época, alegaram que ofereceriam cursos de capacitação aos ex-carroceiros. Ora, cursos de capacitação! Quem é que consegue emprego com curso de capacitação? Isso é um subterfúgio, não uma alternativa. Resultado: antes, os cavalos puxavam as carroças; agora elas são puxadas pelos homens.
Carroceiros, invasores, latas de lixo ocupadas. Não pode, é errado, mas é preciso haver uma solução para esses dramas dentro da lei.
Isso é importante: dentro da lei.
Um dia, um colega jornalista me disse, a fim de defender esses pouco inteligentes protestos que praticam ilegalidades, como trancar ruas ou invadir prédios públicos:
"A democracia não é o império da lei".
Foi aí que percebi como os dramas da pobreza nos empurram para baixo e para trás, porque, sim, sim, mil vezes sim, a democracia "É" o império da lei. A lei é a única garantia da democracia. Melhor uma lei errada do que uma lei burlada, melhor a legalidade do que a justiça. Nenhum homem, nenhum partido, nenhuma associação, nenhum governo é capaz de garantir a igualdade. A igualdade só é alcançada através da lei.
Mas aí retornamos ao impasse ético, ao perguntar: como brandir a lei diante do rosto do pai que vê seus filhos morrendo de fome?
Eis a questão: este homem tem de estar dentro da lei, protegido por ela. A fome tem de ser ilegal, precisar dormir em uma lixeira tem de ser ilegal, homens perdendo o trabalho sem que haja alternativa prática tem de ser ilegal.
Quando os antigos romanos trocaram a tradição oral pelas leis escritas, criaram aquele brocardo famoso: Dura lex sed lex. A lei é dura, mas é lei. Sem dúvida, a lei há de valer para todos. Mas, às vezes, ela não pode ser tão dura. Às vezes, ela tem de ser leve para nela incluir os que são obrigados a viver fora da lei.
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O que você nunca deve perguntar a um americano?
Saiba qual é a resposta hoje, a partir das 19h, quando lançarei este livro na Saraiva do Moinhos Shopping.
Até lá.