O Edward é um amigo americano que tenho. Uma noite, fomos jantar em um restaurante do centro de Boston com as respectivas famílias. Quando chegamos, ele já nos esperava. O Bernardo, que andava uns metros à frente, cumprimentou-o com certa formalidade e o Edward, sorrindo, reclamou:
– Que é isso, Bernie? Está até parecendo um americano! Vem cá e me dá um abraço!
A reação do Edward à timidez do Bernardo demonstra bem algumas características de americanos e brasileiros. Uma delas é o bom humor dos americanos. A outra é a afetividade dos brasileiros. Nós nos abraçamos, nos tocamos, nos beijamos. Um americano, você lhe dá a mão em cumprimento uma única vez, ao conhecê-lo. Depois, ele se satisfaz com um sorriso e um good morning. Você toca em um americano e é como se ele tivesse recebido uma descarga elétrica. Ele se enrijece e só não protesta, "não me toca!", porque eles são muito educados. Agora, se você se meter na vida dele, perguntar demais ou invadir seu espaço, o bom humor típico se desmancha e é possível que seja emitida uma advertência clássica:
– Isso não é da sua conta.
Esta censura encontra-se na raiz da cultura americana. Para o americano, nenhum valor está acima da sua liberdade como indivíduo. Para isso os Estados Unidos foram criados pelos chamados Pais da Pátria. Nenhum rei, nenhum ditador, nenhum tirano, nenhum controle do Estado pode ser mais importante do que um único cidadão, se ele estiver cumprindo com suas obrigações. Se ele estiver dentro da lei, ele é o rei de si mesmo.
Esse conceito define a forma de agir do americano e explica muita coisa por aqui. Explica Trump, por exemplo, e explica o sistema eleitoral dos Estados Unidos.
Por ora, vou me ater ao sistema eleitoral. Para o brasileiro, é absurdo um candidato ter mais votos e perder no colégio eleitoral, como ocorreu no pleito deste ano. Para o americano, é lógico. Não para todos os americanos, claro, porque muitos deles, mesmo cultos, não compreendem o seu próprio país. Isso acontece sobretudo entre os jovens, porque os jovens... bem, são jovens, sabe como é: músculos rijos e articulações flexíveis produzem excesso de autoconfiança e excesso de autoconfiança produz pressa e pressa produz erro.
Há que se parar um momento e olhar para trás para entender como se formou o que está posto.
Os Estados Unidos foram, realmente, Estados que se uniram a fim de constituir uma nação. O Brasil é um país que foi dividido entre vários Estados; os Estados Unidos foram Estados que se juntaram para formar um país. As 13 colônias inglesas funcionavam como comunidades independentes, no século 18.
Imagine que Brasil, Argentina e Uruguai quisessem constituir uma única e grande nação. Representantes dos três países se encontrariam para elaborar as regras do novo país. Depois de algum tempo e muitos debates, o Brargenguai seria fundado, mas certamente brasileiros, argentinos e uruguaios continuariam com suas peculiaridades e muitas de suas normas específicas.
Foi assim nos Estados Unidos. Por isso, os Estados prezam sua autonomia de maneira especial. Faz parte do princípio do respeito ao indivíduo – cada comunidade tem direito de decidir como viver, e assim o faz.
Os americanos consideram ofensivo a União querer se meter nos seus assuntos. Donde a polêmica do casamento gay, no ano passado. Não foi pela questão moral, mas pela interferência da União nas leis estaduais.
Nos últimos tempos, os democratas vinham dizendo que pretendiam restringir o uso de armas em todo o país. Foi uma das causas da derrota de Hillary. Menos pelas armas e mais pela imposição. Como assim, um grupo de iluminados quer me dizer se devo ou não ter arma? O que é isso? Quem decide sou eu! Meta-se nos seus negócios! Isso não é da sua conta!
A eleição americana não é uma eleição. São 50. O indivíduo, no caso, não é o eleitor, mas cada um dos 50 Estados. Trump ganhou na imensa maioria dos Estados e dos condados. Sua eleição é justa e legítima, de acordo com a noção básica da democracia americana. Vou seguir neste assunto.