Pressionado pelos políticos e pela opinião pública norte-americana, por causa do fracasso na Baía dos Porcos (a invasão frustrada de Cuba por americanos de origem cubana) e pelas falhas ao não conseguir antever a Crise dos Mísseis (quando os soviéticos movimentaram mísseis que poderiam atingir os EUA a partir da ilha de Cuba), John Kennedy e seu irmão Bobby, então procurador-geral de governo, colocaram na cabeça, em 1963, que iriam eliminar o presidente de Cuba, Fidel Castro.
A CIA, agência de inteligência do governo, tinha um problema sério com a União Soviética, de quem Cuba era satélite: os EUA nunca conseguiram recrutar um agente duplo que atuasse no alto escalão soviético. Na verdade, a CIA sempre teve problemas em Moscou. Por outro lado, os soviéticos recrutaram o inglês Kim Philby do serviço secreto britânico e Aldrich Ames, o superespião que se rendeu, por dinheiro, à União Soviética e trabalhava como espião enquanto tinha o cargo de chefe de contraterrorismo da CIA. Ames era justamente o nome que deveria zelar pela segurança dos agentes e que era o responsável por isolar a agência de espiões. Pago com punhados de dólares, ele entregou segredos poderosos que levaram vários agentes à morte.
Os irmãos Kennedy comissionaram, então, a CIA para formular um plano, já que a agência entendia bem sobre a questão de Cuba e muito pouco sobre a soviética. Eles concluíram que teria de ser algo discreto e sem rastros para não dar margem à uma possível revolta cubana. Pediram a Rolando Cubela, major cubano que atuava como espião da CIA dentro do governo Fidel, para ser o seu algoz, já que mantinha relação próxima com o presidente cubano. Quem conta mais sobre isso é o jornalista Tim Weiner, no excelente livro de 741 páginas O Legado das Cinzas, uma devassa sobre a CIA e seus erros.
Eis um trecho: “Em 5 de setembro, (Cubela) encontrou-se com o agente da CIA, Nestor Sanchez, em Porto Alegre, Brasil, onde representava o governo cubano nos Jogos Universitários Internacionais”.
Três míseras linhas em mais de 740 páginas. Quase nada. Mas acredito na veracidade da história que teria se passado em Porto Alegre, principalmente, por três motivos: 1) Tim Weiner escrevia para o jornal mais celebrado do mundo, The New York Times, e foi o jornalista com maior experiência em segurança dos Estados Unidos. Weiner também escreveu um livro sobre o FBI; 2) O Legado das Cinzas apresenta um trabalho minucioso de investigação; 3) porque, de fato, o governo norte-americano tentou matar Fidel Castro.
A espionagem era mais livre em momentos em que os cubanos deixavam o país e não estavam sob os olhos opressores do regime. Mas... Encontro de agentes da CIA, em Porto Alegre, para planejar a morte de Fidel? Eu não conhecia essa história e confesso que não sabia que uma trama com possível repercussão mundial tivesse chegado tão perto de nós. É ouro puro no colo do jornalista.
Em agosto de 1963, a capital gaúcha era uma cidade com 700 mil habitantes, metade do que é hoje, e, igualmente, com metade da ocupação geográfica atual. Foi a escolhida para sediar os Jogos Mundiais Universitários (Universíade), na primeira vez em que a América Latina recebia o evento. À época, a Universíade só perdia em popularidade para os Jogos Olímpicos. Até a Copa de 2014, no Brasil, era o maior evento esportivo internacional sediado por Porto Alegre. Cerca de 1,5 mil atletas universitários desembarcaram na cidade. A Guerra Fria, iniciada depois da Segunda Guerra Mundial, a disputa mundial entre capitalismo (EUA e apoiadores) e comunismo (União Soviética e seus satélites) dividia a opinião do mundo todo. Os EUA não vieram, possivelmente em boicote aos jogos. Cuba veio e ficou 10º lugar no quadro de medalhas, com o Brasil em 8ª (com duas medalhas de ouro, nenhuma de prata e oito de bronze, 10 ao todo).
Segundo o jornalista Cláudio Cabral, na época, os EUA justificaram a ausência por falta de recursos e de organização. Olhando em perspectiva, é difícil acreditar que o Peru conseguiu e os EUA, a potência que sempre foi, não foi capaz de mandar os seus atletas. Mas quem sou eu para contrariar o Cabral, saudoso jornalista.
A ideia deles seria injetar veneno na bebida de Fidel. Procurei, e não encontrei, alguma possível testemunha do encontro dos dois espiões em Porto Alegre, para tratar da morte do presidente cubano.
O que encontrei foram dois livros sobre a Universíade de 1963. Um me foi dado pela professora Maristel Pereira Nogueira, resultado de uma dissertação de metrado que analisou alguns jornais da época frente ao cenário político difícil. Outro comprei por um site, foi escrito pelo jornalista Rodrigo Koch. São muito completos. Os torcedores lotaram as arquibancadas do ginásio da Universíade, mais tarde rebatizado Ginásio da Brigada Militar, na Avenida Silva Só. O ginásio fora construído para o evento e, recentemente, demolido. O livro de Koch, editado pela Unisinos, nos serve muito bem sobre os placares dos jogos, além de contar com outros dados curiosos. Cuba, por exemplo, perdeu no basquete para o Brasil, em um jogo que terminou com uma diferença de 40 pontos para a os meninos brasileiros. Igualmente construída na época foi a Vila Olímpica, um conjunto de prédios da antiga Caixa Estadual, no bairro Partenon, em Porto Alegre, onde atualmente funciona um condomínio.
Houve disputas em diferentes locais de Porto Alegre. As cerimônias de abertura e encerramento foram no Estádio Olímpico, que também sediou as provas de atletismo e natação. Saltos ornamentais tiveram lugar no Grêmio Náutico União, e tênis, no Leopoldina Juvenil. Esgrima, nos armazéns do Cais do Porto. Vários edifícios históricos de Porto Alegre foram usados como ponto de apoio para os atletas. O “mata-borrão”, que recebeu esse apelido na época devido ao seu formato, foi usado para uma exposição sobre o Rio Grande do Sul. Localizado na esquina da Andrade Neves com Borges de Medeiros, esse prédio depois seria demolido, dando lugar à edificação onde hoje funciona o Tudo Fácil.
Adehmar Ferreira da Silva acendeu a pira olímpica, então localizada no antigo estádio do Grêmio. Adehmar era o único bicampeão olímpico brasileiro. Em seu livro, a professora Maristel lembra que faltou luz um pouco antes do início da abertura. O presidente João Goulart não veio a Porto Alegre – já vivia o clima de turbulência que deu origem ao golpe de 1964, meses depois. Quem abriu os jogos, pelo governo federal, foi o então ministro da Educação, Paulo de Tarso, que foi vaiado pela plateia, provavelmente inconformada com a ausência de Jango. Tarso sequer conseguiu concluir sua fala. Então governador, Ildo Meneghetti assumiu o microfone e proferiu um discurso protocolar.
Havia um clima de tensão no ar por causa da Guerra Fria, clima do qual os organizadores da Universíade tentaram ficar distantes. Mas não foi possível: Porto Alegre acabou sendo o centro de uma disputa mundial. Um atleta de 25 anos do basquete cubano, Roberto Perez Ondarse, desertou enquanto caminhava com amigos num fim de tarde, na Rua dos Andradas, o que dá uma ideia da atmosfera de liberdade da qual o Brasil ainda gozava. A prática do abandono dos atletas cubanos se tornaria mais comum nos anos seguintes, a partir da possibilidade de viagem para fora daquele país. Mas também é justo lembrar que Ondarse havia se apaixonado por um atleta do vôlei do Brasil.
Foi em maio do ano seguinte que o Brasil mergulhou na escuridão do golpe militar. Cubela e Sanchez, os dois espiões cubanos, se encontraram mais uma vez após o episódio de Porto Alegre. Foi em Paris, na França. Já o plano de matar Fidel fez água devido à sucessão de acontecimentos históricos. Em novembro de 1963, apenas dois meses depois da Universíade, Kennedy foi assassinado por Lee Harvey Oswald, que atirou com seu rifle de um deposito de livros, em Dallas, no Texas. Pelo menos no governo norte-americano, na época, assumido por Lyndon Johnson, não se falou mais em “matar Fidel”. Johnson tinha outros problemas para resolver, como a escalada de violência no Vietnã, onde os EUA iam perdendo a guerra, além dos vários problemas internos.