Quatro anos antes de virar polêmica com a tentativa do governo federal de terminar com a cobrança, o seguro obrigatório de veículo, o Dpvat, estava no radar de auditorias do Tribunal de Contas da União. Concluído em 2016, um pente-fino no sistema de fiscalização do uso dos recursos arrecadados e na aplicação do dinheiro pela seguradora Líder apontou uma série de irregularidades.
O relator do processo contra a Superintendência de Seguros Privados (Susep, órgão do governo federal responsável por fiscalizar o mercado de seguros), ministro Bruno Dantas, atribuiu o descontrole à desorganização e falta de critérios da Susep.
Ele lembra que, desde então, o valor do Dpvat para carros, por exemplo, caiu de R$ 105, em 2016, para R$ 5,23, neste ano. De lá pra cá, o mercado foi mais regulado, o comando da seguradora Líder mudou, mas o assunto ainda gera debate.
Em 2016, o senhor foi relator de auditoria no TCU sobre a prestação de contas do Dpvat. Quais os principais problemas?
O Tribunal de Contas da União começou a se debruçar sobre a questão do seguro Dpvat ainda em 2014. Fizemos uma auditoria na Susep (Superintendência de Seguros Privados), para saber se estavam fiscalizando de forma adequada a seguradora Líder e o Dpvat. O principal achado da auditoria foi que havia uma estrutura na modelagem do Dpvat que estimulava a seguradora a inflar gastos administrativos porque, assim, obteria lucros maiores.
Explico: existe na legislação um percentual teto de lucro para a seguradora que venha a operar o Dpvat, que é de 2% sobre o valor total, o valor bruto arrecadado. Não é sobre o valor líquido. Isso significa que, quanto maiores forem os custos administrativos, a seguradora repassa esse custo para as tarifas que são pagas pelos usuários e, com isso, aumenta a arrecadação e aumenta os 2%.
Para dar um exemplo hipotético: imagine que toda a arrecadação do Dpvat fosse de R$ 1 bilhão. Se ela infla em R$ 200 milhões os gastos administrativos, ela passa a arrecadar não mais R$ 1 bilhão, mas R$ 1,2 bilhão. E os 2% de lucro passam a incidir sobre esses R$ 1,2 bilhão e não do R$ 1 bilhão inicial. Essa é uma estrutura de incentivos perversa porque prejudica o consumidor. Identificamos pela auditoria que não havia qualquer fiscalização da Susep sobre esses gastos administrativos. Ora, se existe uma regra legal e contratual de que, quanto maior a arrecadação, maior o lucro da empresa, deveria haver (fiscalização da) Superintendência de Seguros Privados em cima da operadora do Dpvat para verificar se esses gastos não estavam sendo inflados artificialmente. O que percebemos é que a fiscalização da Susep era absolutamente frágil.
O papel do TCU foi ver de que maneira a Susep estava fiscalizando e a conclusão foi que, naquela época, a Susep tinha um controle absolutamente frágil, falho, até certo ponto negligente.
BRUNO DANTAS
Ministro do TCU
Quando o senhor fala em inflar os gastos para maquiar a contabilidade, era feito de forma voluntária ou involuntária?
Na verdade, não entramos nesse mérito. Verificamos, por exemplo, que a seguradora Líder simplesmente gastava com advogados valores absolutamente incompatíveis com qualquer outra atividade. Um empresário que disputa mercado e que precisa competir tende a reduzir ao máximo os gastos administrativos, com honorários de advogados, com locação de prédios e compra de veículos. Empresas que buscam lucro mediante competição tendem a reduzir essas despesas. Percebemos que havia tendência de expansão na operadora do Dpvat.
Como fiscalizávamos a Susep, e não a seguradora Líder, não foi o escopo da auditoria saber se isso foi feito dolosamente ou se foi mera incompetência. Mas isso é fato objetivo. Havia um gasto desproporcional com despesas administrativas e verificamos que o resultado era aumentar o lucro da seguradora.
No fim das contas, esse descontrole, esse dinheiro é público, de quem paga o Dpvat?
O cidadão não tem a opção de não pagar ou de contratar outra seguradora. Então, é evidente que tem uma natureza tributária, ainda que lato sensu. Vejo que a seguradora sempre bate na tecla de que esse valor seria um recurso privado, mas é importante ver de onde vem e de que maneira os cidadãos são cobrados a pagar o valor do seguro.
Só para ter uma ideia do que significou essa fiscalização do TCU, o brasileiro geralmente tem memória curta, a auditoria foi julgada de 2015 para 2016. Entre 2013 e 2016, a tarifa do Dpvat na categoria 1, que é a principal, era de R$ 105,65. Depois que o TCU fez a auditoria e exigiu que a Susep elaborasse manuais e verificasse no detalhe as despesas administrativas, houve em 2017 redução da tarifa de R$ 105 para R$ 68. Em 2018, baixa para R$ 45. E, em 2019, para R$ 16 (decisão posterior reduziu o valor para R$ 5,23).
O brasileiro estava pagando muito mais do que deveria?
Exatamente. Por falta de fiscalização, por conta desses fatos que, de certa maneira, inflavam as despesas administrativas. Não era nosso papel (identificar) se houve alguma fraude. Isso é responsabilidade do Ministério Público apurar, de outros órgãos. O papel do TCU foi ver de que maneira a Susep estava fiscalizando e a conclusão foi que, naquela época, a Susep tinha um controle absolutamente frágil, falho, até certo ponto negligente.
Quando perceberam que o TCU estava em cima – porque aí há uma série de consequências para os diretores da Susep, se eles não obedecem uma ordem do TCU, desde condenação em multa até a inabilitação para ocupar cargos públicos por oito anos, então veja que são consequências graves – e como a Susep nunca tinha sofrido fiscalização tão rigorosa, creio que de 2016 em diante eles passaram a fazer o seu papel e isso resulta no que está acontecendo hoje.
Reportagem do jornal Folha de S.Paulo mostrou que auditoria no Dpvat apontou R$ 1 bilhão em gastos atípicos. Surpreende o senhor?
É verdade. O TCU fez uma auditoria pública, como controle externo que é, e fez análise por amostra. E, agora, dados de uma auditoria independente, privada, contratada pela própria seguradora, confirma o que já sabíamos. O que é novidade no que está vindo a público é o tipo de gasto feito. Mas isso não é papel do TCU.
O nosso dever é apontar o que apontamos, vimos o trabalho da Susep, está claro que a Susep está trabalhando muito melhor nesse setor agora e esperamos que essa seja a tônica da administração pública brasileira. O papel do TCU é ajudar a gestão pública a melhorar, apontar erros e oportunidades de melhoria, e creio que cumprimos nossa finalidade institucional nesse caso, baixando o valor do seguro. Agora, o presidente da República quer levar a zero reais porque existe um saldo de contingência, mas isso é outra discussão. O fato é que a sociedade já está se beneficiando do trabalho do TCU.
De lá para cá, medidas foram tomadas na Susep para que a situação fosse regularizada?
Sim. O TCU expediu uma série de determinações e recomendações. Uma delas foi que a Susep criasse um manual de procedimento de auditoria, com consistência, porque isso facilita até mesmo a fiscalização sobre a Susep.
Se a Susep tem um manual de auditoria sobre a seguradora que opera o Dpvat, lá na frente, quando formos fiscalizar a Susep de novo, poderemos verificar: o item 1 foi cumprido? E o item 2? É fazer o checklist para que não tenhamos de fazer uma auditoria inteira do zero. E, sim, a Susep tem se portado bem, dentro das limitações materiais e humanas que todos os órgãos públicos têm, mas tem dado respostas para as determinações e as recomendações que fizemos no acórdão lá de 2015.
O presidente Bolsonaro diz que o Dpvat é uma caixa-preta.
Esse é um debate importante porque onera a vida de praticamente metade da população brasileira, porque as pessoas têm carros, motos, veículos automotores. Isso atinge a população em cheio. É preciso que o Estado trate esses temas com o máximo de responsabilidade. Não se pode tratar um ônus para o cidadão brasileiro como se fosse algo que não é de ninguém e que, por isso, não precisa haver fiscalização nenhuma. É importante que esse assunto tenha vindo para a pauta nacional e espero que seja conduzido dentro de bases racionais, razoáveis, mas acredito que é um debate importantíssimo.