O jornalista Laurentino Gomes passou os últimos 15 anos debruçado sobre três períodos fundamentais da história brasileira: a vinda da família real portuguesa ao Brasil, a Independência e a Proclamação da República. Com 1808, 1822 e 1889, tornou-se best-seller e um dos historiadores mais importantes do país. Como todos, lamenta o incêndio que destruiu o Museu Nacional, mas não economiza nas críticas, mesmo diante da comoção em torno da tragédia.
— Os museus no Brasil, com algumas exceções, são depósitos de coisas antigas. Os acervos são incompreensíveis, não têm coerência, são esquizofrênicos. O Museu Nacional era assim. Era um museu sem pai nem mãe — relata.
Por que o país só acordou ao Museu Nacional quando já estava em chamas?
O luto não é tanto pelo museu, mas pelo próprio Brasil, porque é uma sequência tão inacreditável de notícias ruins nos últimos tempos (escândalos de corrupção, violência, obras que desabam porque foram mal feitas, pessoas morrendo nas filas dos hospitais), que o incêndio é mais uma. É mais o que o Brasil poderia ter sido e não foi. O país foi fundado ali dentro como Estado nacional. É ali que começou o processo de independência. Dom Pedro virou imperador, depois abdicou e foi embora para Portugal. Dom Pedro II teve a maioridade ali em 1840, e depois até a República. Ou seja, a criação do Estado brasileiro aconteceu dentro do Palácio de São Cristóvão. É como se aquilo ali fosse a nossa certidão de nascimento como país independente. E a gente queimou a certidão de nascimento. O luto é esse, mais pelo Brasil do que pelo museu.
Quais as causas que levaram a isso?
É um conjunto inacreditável de desleixo, inépcia, falta de vontade política e de interesse mesmo. O Museu Nacional não é exceção: é parte de um quadro do Brasil inteiro, que não tem o menor interesse, políticas públicas coerentes e com resultados visíveis de preservação do patrimônio histórico, cultural e artístico.
Esse não é um fenômeno de agora.
Essa é a grande discussão e a grande hipocrisia que estou observando agora. "Ah, se o presidente tivesse liberado um 'checão' de R$ 14 milhões, o museu teria sido salvo no ano passado". "Se o governo tal tivesse feito tal coisa, teria resolvido". "Se o BNDES tivesse feito tal coisa...". É balela. O museu estava abandonado há décadas. Era um museu sem pai nem mãe. Não tinha nem gente que o visitasse. O número de visitantes era metade do número de brasileiros que vão ao Museu do Louvre por ano. Ou seja, uma grande tragédia. Então, é uma grande hipocrisia. De repente, o nosso museu mais importante e mais simbólico é destruído, vira cinzas. E aí esse tema se insere na campanha e ganha força: o Brasil passou a discutir educação e cultura. A gente foi forçado a entrar numa discussão, quando na verdade estávamos repetindo o nosso comportamento típico, que é fugir das discussões importantes e ir para o secundário. Se o Brasil quiser ser alguma coisa no futuro, vai ter de cuidar de museu, educação e da sua memória.
O que explica a falta de interesse pela história?
O ponto principal é uma identidade nacional muito mal formada, mal constituída. Como a gente vai ter interesse pela história e entender o Brasil, que isso é parte fundamental para construir a identidade nacional, se as pessoas não sabem ler, não sabem escrever, não estudam, não frequentaram a escola?
A construção do imaginário e da identidade brasileira foi feita de cima para baixo, pelo Império, pelo imperador, depois por alguns "imperadores republicanos", como Getúlio Vargas, e pelos generais do regime de 1964, que impunham uma mitologia – que o brasileiro é um ser pacífico, cordial, trabalhador, honesto, um gigante adormecido que uma hora ia surpreender o mundo com as suas múltiplas virtudes. Aí, num ambiente de democracia, estamos chocados ao descobrir o que de fato somos. Então, o Brasil é um dos países mais violentos do mundo?
É isso mesmo. É um dos países mais corruptos do mundo? É isso mesmo. Somos incompetentes para organizar, implantar políticas públicas e garantir segurança mínima para as pessoas? Sim. E, no fundo, isso é estudar história. Por mais assustador que seja o ambiente em que estamos vivendo, no longo prazo é muito saudável, porque o resultado disso tudo vai ser construir uma nova identidade nacional, mais verdadeira e menos mitológica.
Visitei o Palácio do Catete há pouco tempo e fiquei chocado com o abandono.
Visito muitos museus no Brasil e fora (do país). E é muito chocante. Lá fora, os museus são lugares maravilhosos, são parte fundamental do roteiro turístico de quem vai a Nova York, Paris, Lisboa.
No Brasil, são experiências desagradáveis, depósitos de coisas antigas. Os acervos são incompreensíveis, esquizofrênicos. Que era o caso do Museu Nacional, principalmente. Lá dentro, tem uma burocracia... São cabides de empregos mal pagos, de pessoas que estão lá dentro com uma atitude vitimizada: "se tivéssemos mais dinheiro, faríamos um museu maravilhoso". Não é verdade. Só estão contando o tempo para a aposentadoria. Não têm o menor interesse em acolher os visitantes que ali chegam. Não existe museu no Brasil. A gente não chegou nessa etapa ainda, com algumas exceções, como o Museu Imperial.
Algum item na perda do Museu Nacional é mais lamentável?
A tragédia não é a perda, é o que aconteceu com o próprio museu, o que poderia ter sido e não foi. Toda perda de acervo de museu é lamentável. Mas não é disso que estamos chorando. O choro não é pelo acervo do museu, mas pelo abandono que aquilo ali sofreu. E ali é um retrato do Brasil, as ruínas desse museu serão um cartão postal de todas as nossas mazelas. Acho que é isso que estamos lamentando.