William Shakespeare nasceu num ano em que a peste matou um quinto da população de Stratford Upon Avon – mas não levou o bebê Will. Isso provavelmente tem a ver com o fato dele ter nascido em uma família do que seria o embrião de uma classe média-alta. Seu pai tinha terras, rebanhos de ovelhas e ainda uma oficina de luvas e bolsas de couro branco – então considerados artigos de luxo. A casa tinha vários cômodos, criados e camas – que, aprendi, eram as Ferraris do século XVI. As crianças ali tinham pouco contato com os ratos cujas pulgas transmitiam o causador da doença, a bactéria Yersinia pestis. De acordo Greenblatt, seu biógrafo, ainda durante a vida de Shakespeare ocorreram diversos surtos de peste – 1582, 1592-93, 1603-04, 1606 e 1608-09, ciclos iniciados desde os anos 1300.
Como não existiam vacinas, por séculos os surtos continuaram matando milhares. Pois, ao contrário do que muitos erroneamente espalham, é impossível alcançar imunidade de rebanho por imunização natural. Foi provavelmente durante um surto de peste que o jovem Will Shakespeare viu pela primeira vez, em Stratford, um grupo de atores itinerantes. Naquela época, acreditava-se que as doenças se espalhavam pelo ar – sem saber que eram os roedores e suas pulgas que transmitiam a bactéria. As pessoas praticavam então o distanciamento – pelo que ouvi lá, distanciamentos, quarentenas e lockdowns não eram tão estranhos aos ingleses, que registram cuidadosamente – e aprendem com – sua história.
Os teatros aglomeravam milhares; então, durante surtos de peste, teatros como o Globe, fundado em 1599, eram fechados. Mas os atores precisavam trabalhar. Não podiam fazer peças por Zoom, nem postar no YouTube. Viajavam para o interior da Inglaterra, dando oportunidade aos moradores das cidades pequenas de ver as peças que encenavam. Fascinado, Will, que fora um ótimo aluno e gostava de escrever, convenceu a família de que não queria ser fazendeiro nem fazer luvas – queria ser ator e escrever peças.
Teve tanto sucesso que o convidaram para ser membro permanente do Globe. Ganhou assim muito dinheiro, para alívio da sua família, que achava que precisaria sustentar o artista para sempre. Nenhum dos personagens criados por Shakespeare padeceu da peste, contudo referências à doença podem ser encontradas em praticamente todas elas, várias em Romeu e Julieta. Mortalmente ferido na disputa entre os Capuletos e os Montecchios, Mercutio pragueja: “Que a peste aflija ambas as casas!”.
Hoje, a peste pode ser tratada com antibióticos; há poucos casos registrados no mundo. Hoje, podemos identificar o agente causador de uma doença e produzir vacinas em menos de um ano. Na semana passada, caminhando em frente ao novo Globe, reconstruído nos anos 1950, senti um sopro de esperança. Vendo crianças brincando, pessoas indo a museus e todos usando máscara no teatro, não pude deixar de imaginar como os últimos dois anos impactarão a arte do século que se inicia. Arte e ciência vivem juntas, abraçadas, na essência que compõe a felicidade das pessoas.