Dona Irma K., uma das minhas primeiras leitoras (ainda conservo o e-mail de sua primeira consulta a esta coluna, em março de 2003!) escreve para comentar um fato que lhe chamou a atenção: "Prezado professor, muitas vezes eu levo anos para me dar conta de alguma coisa que sempre esteve debaixo de meus olhos, e aí me acho uma pateta. Esta semana, lendo um comentário político, foi a primeira vez que me dei conta que usamos a mesma palavra, urna, para aquele potinho onde vão recolher as minhas cinzas, quando eu me for deste mundo, e o dispositivo em que votaremos nas próximas eleições. Na verdade, foi o autor do artigo que me chamou a atenção para isso, ao dizer que esperava, em outubro, que nossas esperanças de um futuro melhor não fossem sepultadas nas urnas eletrônicas... Bem, aí tinha que cair a ficha, não é? O senhor poderia me explicar como isso aconteceu?".
Bem, Dona Irma, não foi muito difícil a transição de um sentido para o outro. Em Roma, era chamada de urna mesmo, e designava um grande jarro de cerâmica, usado primeiramente para transportar água, depois para guardar as cinzas ou os ossos dos mortos. Por fazer parte importante da cerimônia dos funerais, logo diversificou-se o material com que eram feitas, já que passaram a ser vistas como o símbolo derradeiro do status do falecido. Foi usada a cerâmica, o ferro, o bronze, a prata, o alabastro, o vidro de várias cores e até mesmo o ouro. Os livros de História registram que Varrão, um dos mais importantes intelectuais do Império Romano, num raro gesto de modéstia, pediu que guardassem suas cinzas numa singela urna de barro, com folhas de murta e de oliveira.
Na mesma Roma Antiga, no entanto, as urnas já eram usadas também para fins de adivinhação. A descrição é de Bluteau, no seu pitoresco linguajar setecentista: "Deitavam dentro de uma urna um grande número de letras e de vocábulos inteiros, e depois de mover as urnas e misturar muito bem, viravam-nas, e o que acaso saía pela ordem das letras e dos vocábulos era a adivinhação"
No séc. 16, o Português importou do Latim este segundo sentido, e o termo passou a designar o recipiente onde se colocam as pedras para os sorteios ou os votos de uma eleição. Esse sentido adquiriu tal preponderância que hoje qualquer brasileiro sabe do que estamos falando quando empregamos expressões surradas como "o Brasil vai às urnas" ou "os governantes deveriam ouvir a voz das urnas". A naturalidade com que falamos na nova urna eletrônica comprova, também, que o primitivo sentido genérico de "recipiente" não é o primeiro que vem à nossa mente. Um gaiato poderia comentar que o tempo inverteu o sinal: enquanto antes o que entrava na urna era o que mais importava, agora, tanto nas eleições quanto na Mega Sena, o mais importante é o que sai...