Ao meu lado, caminhando na esteira, um colega de martírio aproveita para expressar a sua inconformidade com uma palavra desconhecida que acabava de ouvir na TV à sua frente, vinda de um repórter carioca que fazia uma transmissão direta de um dos morros do Rio de Janeiro. Para comprovar que a comunidade estava em paz, naquele momento, ele mostrava uma pacata fila de fregueses na padaria, muitas crianças se dirigindo para a escola e, num campinho improvisado, um renhido jogo de futebol que reunia os tornozelados contra o resto. "Pode isso, Moreno? Dá para inventar assim, na marra? Parece que eles tiram essas palavras da unha do pé com um pauzinho!" (o local que ele mencionou fica um pouco mais ao norte, mas achei mais elegante substituí-lo; como se diz por aí, entendedores entenderão...). Como não sou muito bom em caminhar e explicar ao mesmo tempo, pois toda minha concentração está focada em não cair daquela esteira rolante, prometi que responderia por escrito, na coluna desta quinta-feira — e é o que passo a fazer.
Meu caro confrade (afinal, fazemos parte da mesma "academia"...), nunca deves esquecer que no Português, como em qualquer outra língua do mundo, há basicamente dois tipos de palavras, as nativas e as exóticas — mais ou menos assim como as espécies vegetais. As primeiras, evidentemente, são as mais numerosas. Nasceram no quintal da nossa casa, criadas com os recursos próprios do idioma — seja (1) derivando-se um novo termo a partir de outro já existente pelo acréscimo de sufixos ou prefixos, seja (2) juntando-se duas palavras para formar o que chamamos de vocábulo composto.
Essas produções caseiras são as palavras vernáculas — designação vinda de Roma. Os escravos romanos, em sua grande maioria, eram prisioneiros de guerra ou vítimas de pirataria — estrangeiros, portanto; havia, no entanto, os escravos domésticos, que eram filhos de escravas, já nascidos na casa de seus amos. No Latim, servus designava o escravo vindo de fora, e vernus, o escravo nascido dentro da propriedade senhorial. Daí veio o adjetivo vernaculum ("nascido em casa", "natural da região").
Pois qualquer falante é um perito nessa criação vernácula. Ele domina inconscientemente as regras do jogo, as peças estão aí, à sua disposição, já bem definidas pelo idioma — os radicais, os prefixos e os sufixos — e ninguém precisa de autorização para combiná-las sempre que precisar de um termo que designe uma nova realidade. Nesta semana ouvi um hospital anunciar que em breve vão "extubar" o paciente, ouvi um atleta que ficou dez dias em casa por causa do covid queixar-se do prejuízo que este "destreino" trouxe à sua respiração, e o dirigente de um partido político da situação chamar um ex-presidente de "descondenado". Mesmo se nenhuma das três conseguir ganhar prestígio e conquistar um lugar no vocabulário do falante comum, isso não importa. Todas estão de acordo com as possibilidades combinatórias de nossa língua e — o que é mais importante — têm um significado perfeitamente reconhecível.
No nosso caso, foi o progresso que fez tornozelado vir à tona e, ao que parece, de forma permanente. Durante muitos séculos, o único filhote de tornozelo era tornozeleira, que os dicionários definiam como (1) peça de malha elástica para proteger o tornozelo do atleta ou (2) enfeite para usar no tornozelo (assim como a pulseira é um enfeite para o pulso). Agora, porém, já está mais do que na hora de ampliar esse verbete com uma terceira definição: "equipamento eletrônico para monitorar à distância" — e tornozelado, forma que até bem pouco tempo não se fazia necessária, passou a ser útil por designar a peculiaríssima condição judicial da pessoa que é obrigada a usá-la.