Um publicitário da serra gaúcha, que não vou identificar por razões que logo ficarão bem claras, vem pedir uma mãozinha para vencer uma discussão ortográfica. Depois do beija-mão protocolar, com os elogios de praxe a esta coluna e a seu autor, ele escreve, textualmente: "O Brasil vive tempos difíceis! A opinião pessoal passou a valer mais do que os fatos! Espero que o senhor possa nos ajudar! Temos um cliente muito importante, industrial de sucesso mas com pouco estudo; na semana passada ele se recusou a aprovar uma campanha que fizemos para um de seus produtos, alegando que a palavra multiuso tem acento! Como é que eu provo para essa anta que ele está errado?".
Confesso que no começo eu ficava um pouco cismado com essa abundância de pontos de exclamação, mas acabei aprendendo, na prática, que essa é uma das várias modificações que a internet introduziu em nossos hábitos de escrever. No meu manual interno de estilo, esse sinal ― excetuando a poesia, que é um caso à parte ― só deveria, em princípio, ser usado com parcimônia, reservado para a expressão de emoção evidente, de entusiasmo ou indignação, ou para realçar alguma ordem ou comando.
Quantas vezes disse a meus alunos que evitassem usar pontos de exclamação em demasia, pois isso faria o sinal perder totalmente o efeito desejado! (aqui, por exemplo, o seu emprego é obrigatório, dado o caráter exclamativo da frase em que se encontra). E exemplificava com a conhecida fábula de Esopo, do pastorzinho mentiroso que gritava "Lobo!": o menino deu tantos alarmes falsos que ninguém o acudiu quando o verdadeiro lobo apareceu. Em suma, dizia eu, ponto de exclamação demais perde a força e termina ficando chocho, como milho de pipoca que vira piruá (tirei do Monteiro Lobato).
Aí veio a internet, e com ela todas essas formas modernas de troca de mensagens entre as pessoas. Agora escrevemos mais do que falamos, e o correio eletrônico, o Messenger, o Facebook, o Whatsapp, o Instagram e sei lá quantos outros mantêm nossos dedos ocupados no teclado. Em poucos anos, foi surgindo um estilo próprio para esses textos que produzimos diariamente a mancheias, pois eles precisam ser concisos, mas devem transmitir ao destinatário nossas intenções, nossas ironias, nossas críticas e tudo o mais. Isso nos obrigou a procurar novos aliados para as palavras ― os comentários entre parênteses, as ênfases marcadas por maiúscula, o ponto de exclamação e, sou obrigado a admitir, os emoticons, aquelas carinhas que orientam a forma como o leitor deve interpretar as palavras da mensagem. Imagino, portanto, que tu, prezado leitor, tenhas polvilhado teu texto com exclamações para expressar tua indignação ou teu espanto com a atitude do cliente. Para meu gosto, foste veemente demais, mas c'est la vie: certamente nosso estilo de vestir ou nossas preferências musicais também devem ser diferentes.
Aí veio a internet, e com ela todas essas formas modernas de troca de mensagens entre as pessoas. Agora escrevemos mais do que falamos.
Agora, a má notícia: na questão do multiúso, vais ter de dar o bracinho a torcer, porque a tal "anta" está correta; o errado és tu. Não esqueças que as regras de acentuação valem não só para as palavras já existentes na época da Reforma Ortográfica, mas também para todas as que vierem a surgir desde então ― e elas se aplicam automaticamente, sem a possibilidade de haver exceções. Aqui se trata da regra que nos manda acentuar o I ou o U quando (1) forem tônicos orais, (2) vierem depois de vogal (não semivogal), (3) estiverem sozinhos na sílaba ou acompanhados de S e (4) não forem repetidos. Dito assim pode parecer complexo, mas os exemplos falam por si: juíza e saímos levam acento porque obedecem às quatro condições acima; juiz e sairmos não, porque falha a condição (3) (o I não está sozinho); ias não, porque falha a condição (2) (ele vem antes de vogal); xiita não, porque falha a condição (4) (está repetido); rainha não, porque falha a condição (1) (ele é nasal, e não oral). Esta regra, portanto, que acentua saúde, reúno e gaúcho, não poderá deixar de acentuar palavras recentes como multiúso e reúso. E já que moras na Serra, no meio dos parreirais, vai te acostumando: no dia em que a transgenia produzir uvas nanicas, vamos falar de miniúvas.