A dúvida de hoje é trazida pelo leitor Jairo P., preocupado com a formação de sua filha: “Escrevo-lhe de Porto Alegre em busca de um alívio de espírito. Ocorre que minha filha de 10 anos, em um teste de Português, escreveu carne de gado como o equivalente a carne bovina. A professora corrigiu para carne de boi. Sei que gado designa os animais criados em rebanho doméstico ou comercial, mas... sou de São Sepé, onde se fala carne de ovelha, de porco e de gado! Assim, estou com coração aflito por ter levado minha filha a este erro. Sei, no entanto, que algumas formas de falar da nossa região estão corretas, apenas fora de moda. Seria este o caso? Seria errado escrever carne de gado como equivalente a carne bovina?”
Caro leitor, tens razão quando dizes que, em princípio, o vocábulo gado abrange outras espécies. Temos o gado vacum (e ovelhum e cabrum!), o gado caprino, o gado muar, o gado lanígero, o gado cavalar, o gado humano (expressão muito usada por José do Patrocínio para condenar a escravidão). Aluísio Azevedo, em A Condessa Vésper, teve o topete (e o mau gosto) de escrever que seu personagem “sabia lidar com toda a sorte de gado mulheril, fosse este o mais cornígero e bravio”. No entanto, como acontece em São Sepé e em toda parte, apesar de todas essas distinções, é o boi que vem à nossa mente quando falamos de gado. Cabeças de gado, criação de gado, fazendas de gado – em princípio, é boi.
A língua inglesa, por exemplo, tem palavras distintas para o animal e para a sua carne. No campo, ox, pig e sheep (“boi, porco e carneiro”); no prato, beef, pork e mutton, respectivamente (do Francês boeuf, porc e mouton), resquícios da época em que os Normandos dominaram a Inglaterra. Aqui não é assim, e a palavra carne será interpretada, by default, como vinda do boi ou de seus familiares: carne frita, carne assada, carne moída – é boi, a não ser que se especifique o contrário (carne de porco, carne de cavalo, carne de ovelha, etc.). Por isso, quando a menina disse que carne de gado é a que vem do boi, estava seguindo nossa tradição linguística – confirmada por Érico Veríssimo, em O Senhor Embaixador, quando descreve o recheio das empanadas servidas pelo diplomata: “Galinha misturada com carne de gado e camarão, tudo isso temperado com ervas que só existem em nosso país”.
Mas então, se as duas expressões são equivalentes no uso, a menina foi corrigida indevidamente? Como dizia minha querida avó, calma no Brasil que a Europa está em guerra; como professor que sou, filho de professora e pai de professores, sempre parto da hipótese (algumas vezes desmentida, é claro, para minha grande decepção) de que meus colegas estão fazendo exatamente o que eu faria em situação idêntica. A atitude, à primeira vista exagerada, de não aceitar carne de gado como resposta sugere que a professora estava trabalhando um conteúdo que eu mesmo trabalho até hoje – a relação de vocábulos de nosso léxico comum com seus adjetivos eruditos correspondentes, geralmente de base latina: gato e felino; chuva e pluvial; cavalo e equino; irmão e fraternal – da mesma forma, boi e bovino. O foco não era o significado, mas a relação entre vocábulos irmãos que têm radicais diferentes.