Desta vez a consulta vem de Florianópolis, de onde escreve a professora Gilda Maria W.: "Nossos alunos do noturno estão lendo O Cortiço, de Aluísio Azevedo, o qual, como o senhor deve saber, faz parte do programa básico de Literatura Brasileira. Há uma passagem em que Rita Baiana diz que Léonie, a prostituta, é senhora de seu corpo, "que ela só entrega a quem muito bem lhe der na veneta!" – e é por isso que venho pedir seu auxílio. Mostrei, no dicionário Houaiss, que veneta é o mesmo que vontade ou impulso, mas todos ficaram curiosíssimos – e eu me incluo – ao ver que deriva de veia. O que uma coisa tem a ver com a outra? O senhor poderia nos dar uma luz?".
Prezada Gilda Maria, este é um daqueles vocábulos que vêm nos fazer recordar que a língua é um fenômeno essencialmente histórico. O que tem a ver uma coisa com a outra? Hoje, nada – mas já teve, e temos de voltar ao passado para encontrar uma relação que se perdeu com a evolução da Medicina. Já falei aqui de vários casos semelhantes. A histeria, por exemplo, tem como origem o radical grego hister ("útero"), porque os antigos atribuíam os sintomas histéricos a uma disfunção uterina... Freud, dois mil anos depois, vem mudar radicalmente esta concepção, mas histeria – as palavras, como sabes, são construções mais resistentes que o mármore e o bronze – continua até hoje.
Outro exemplo interessante é o de bossa, que reúne, nos dicionários, dois significados aparentemente desvinculados: de um lado, o mais antigo: "calombo, protuberância"; do outro, o mais recente: "aptidão, queda, estilo". O responsável por este último foi Gall, médico austríaco, grande arauto da Frenologia, pseudociência que foi muito popular no séc. 19. Ele acreditava que podia analisar a personalidade e as aptidões de um paciente com base na forma externa do crânio, já que suas protuberâncias (ou bossas) corresponderiam a áreas mais desenvolvidas do cérebro (a bossa da matemática, a bossa da política, etc.; um personagem de Machado de Assis brinca com o amigo: "Nasceste com a bossa conjugal, como eu com a bossa viajante"). Gall e sua Frenologia desapareceram no vórtice da História, mas sua marca ficou para sempre no Português.
Pois a nossa veneta é simplesmente um diminutivo de veia (usando o radical ven-, o mesmo que aparece em venoso). Às veias, que a Medicina antiga compreendia muito mal, eram atribuídas várias funções psíquicas – daí se dizer que o medo faz gelar o sangue nas veias, enquanto a raiva o faz ferver. Assim como se fala, ainda hoje, na veia poética, na veia cômica, na veia dramática, a linguagem popular usava veneta para designar a "veia de doido", segundo Bluteau, para explicar as "ações inesperadas, repentinas ou extravagantes" das pessoas voluntariosas. E já que estamos no assunto, e já que esta coluna tem o prazer no seu título, ofereço a teus alunos uma pérola do Padre Vieira, considerado, com muita justiça, o Imperador da Língua: "Definindo-se S. Francisco a si mesmo, chamava-se em italiano fatuello di Dio: o doido ou doidinho de Deus. E se os poetas todos têm uma veia de doido, não podia faltar a este doido uma veia de poeta".