Um leitor gentilíssimo, cujo nome deixarei em segredo, manda uma mensagem que me deixa assaz embaraçado: "Antes de expor minha dúvida, caríssimo professor, não posso deixar de louvar sua generosidade cristã ao disponibilizar na internet, gratuitamente, o seu Guia Prático do Português Correto. Já baixei os quatro volumes no computador e estou bebendo aos poucos o conhecimento que transborda em cada página! Agora, a minha pergunta: numa circular que estou mandando aos membros do clube que presido, quero recomendar que todos memorizem a letra do nosso hino. A forma correta seria "Vamos saber decor nosso hino"? Ou seria décor, como já vi escrito por aí? Adianto ao mestre que já procurei nos bons dicionários e não encontrei a palavra".
Caro amigo, agradeço muito o tom elogioso com que você se refere ao meu trabalho. Contudo, antes de passarmos à resolução de sua dúvida, sinto-me obrigado a desfazer um pequeno equívoco: como minha formação me impede de colher os louros que pertencem a outrem, preciso informar que foi outro cristão, certamente um verdadeiro patife, que colocou o Guia Prático na internet. Você há de convir que eu estaria fora do meu juízo se praticasse um ato de pura pirataria contra mim mesmo...
Agora, vamos à sua pergunta: o amigo nada encontrou nos dicionários porque estava à procura de um vocábulo só, sem perceber que estamos aqui diante de duas palavras autônomas - a preposição de e o substantivo cor (com O aberto, como a primeira sílaba de porta), forma herdada do Latim cor, cordis ("coração"). Saber de cor é, no fundo, saber do fundo do coração - ideia que fica muito mais evidente no Inglês e no Francês, que dizem by heart e par coeur, respectivamente.
Para que a expressão tenha sentido, é importante lembrar que o coração foi, por muito tempo, considerado a sede da coragem (olhe aí uma palavra da mesma família!), dos sentimentos e da inteligência. A Ciência moderna, é claro, passou a coroa e o cetro para o cérebro, mas mesmo assim, no nosso imaginário, o coração continua soberano. Quando anunciaram o primeiro transplante de coração, feito pelo Dr. Barnard, em 1967, não foram poucas as vozes na imprensa que perguntaram como o transplantado iria conviver com os sentimentos do doador... A tanto eu não chego, mas confesso que ainda acho natural, por exemplo, que seja para ele, e não para o cérebro, que Cupido continue dirigindo suas flechas traiçoeiras.
Em decorar e recordar, não por acaso, o mesmo radical de cor está presente, a sugerir, portanto, a existência de uma ligação subterrânea entre memória e sentimento. Num século intelectualmente tão miserável quanto este, em que os pedagogos tratam o ato de decorar como Maomé tratava o toucinho, devíamos dar mais ouvidos à sábia voz de George Steiner, grande defensor da memorização: saber de cor um texto clássico permite travar com ele um diálogo interminável e cada vez mais rico, pois o prazer estético e o ensinamento que dele podemos extrair vão crescer à medida que cresce nossa própria experiência.