Já relatei nesta coluna o que aconteceu quando um velho amigo, visitando Montevidéu, passou por um cinema que anunciava sessões vespertinas de Free Willy, o conhecidíssimo filme sobre a amizade de um menino com uma orca. Ao ver, no anúncio luminoso, o título do filme em Espanhol – Liberten a Willy –, teve um verdadeiro choque ao se dar conta de que o free não fazia parte do nome do personagem, mas era simplesmente uma construção de imperativo: Libertem Willy. "Tive de atravessar a fronteira para enxergar o que estava bem debaixo do meu nariz", disse ele, constrangido.
Para confortá-lo, expliquei que é assim mesmo que acontece: o que é familiar fica praticamente invisível para nós, até que uma dessas súbitas mudanças de perspectiva nos faz enxergar, pela primeira vez, detalhes que sempre estiveram bem debaixo de nosso nariz. A princípio pode ser embaraçoso, mas o constrangimento logo cede lugar ao prazer da descoberta. Perguntei-lhe se ele sabia que o desfiladeiro se chama assim por ser uma passagem tão estreita que as tropas só passam por ela se formarem uma fila. Não, disse ele, não sabia. E por acaso já tinha se dado conta de que parrudo é o sujeito troncudo, atarracado, robusto como uma parra (videira)? Não, também não. E não gostou de ficar sabendo?
Pois na semana passada, ao ler a excelente retrospectiva das edições brasileiras de Pinóquio que Denise Bottman publicou em seu blogue, chegou a minha vez de bater na testa. Segundo a pesquisadora, a primeira edição da obra de Carlo Collodi foi feita por nossa antiga Livraria Selbach, lá pelos anos 20, numa tradução do padre jesuíta Leopoldo Brentano. O título? Zé Pinho. Entendi o choque que meu amigo sentiu em Montevidéu: depois de mais de cinquenta anos de convívio com o boneco de madeira, só agora me dava conta de que Gepeto o tinha batizado de Pinóquio porque era um boneco feito de um toco de... pinho! Não comentei com os amigos porque, tenho certeza, todos eles devem saber disso há muito tempo e não sou eu que vou pagar recibo.
Gostaria de destacar a engenhosidade do padre Brentano. No começo, achei que a troca do nome original para Zé Pinho se devia àquela tendência tupiniquim, muito acesa nas primeiras décadas do séc. 20, de "nacionalizar" os nomes dos heróis das histórias infantis (Popeye, por exemplo, foi lançado aqui como Brocoió; Alley Oop, como Brucutu; Mickey Mouse, como Ratinho Curioso). Agora vejo melhor a sua intenção: ao sentir que a relação que o autor estabeleceu entre a madeira e o boneco (no Italiano, pino-Pinochio; no Português, pinho-Pinóquio) não ficava suficientemente transparente para o leitor brasileiro – eu que o diga! –, tentou deixá-la mais visível. Como eu disse antes, o prazer dessa ingênua descoberta aliviou o arranhão no meu amor-próprio. De inhapa, fiquei sabendo que o Pinóquio é descendente dos pinheiros da nossa serra e primo próximo do pinhão. É quase gaúcho...