Há exatos cem anos, em uma cama do sanatório de Kierling, perto de Viena, Franz Kafka despertava para uma intranquila posteridade. Dizer que um escritor insatisfeito consigo mesmo em todas as dimensões possíveis da existência não imaginava o significado que sua obra teria para os leitores do futuro é um eufemismo. Kafka, a lenda literária, o gênio comparado a Dante e Shakespeare, o autor que parece ter capturado a essência de sua época melhor do que qualquer outro, o nome que virou um adjetivo e depois um clichê, talvez não coubesse na imaginação nem mesmo do próprio Kafka.
Não surpreende que tantos escritores, direta ou indiretamente, tenham transformado o colega em matéria literária. Em um texto escrito no início dos anos 1970 (I Always Wanted You To Admire My Fasting), Philip Roth inventa uma história alternativa em que o autor de A Metamorfose escapa da tuberculose e dos nazistas, indo parar em New Jersey – onde trabalha como professor de hebraico e namora uma tia de Roth. No romance Floresta Escura (2017), Nicole Krauss imagina Kafka vivendo na Palestina, no período entre as duas guerras mundiais, deixando para trás todos os livros que poderia ter escrito se tivesse vivido além dos 40 anos.
Quem de fato se mudou para a Palestina, pouco antes do início da Segunda Guerra Mundial, foi o sionista Max Brod, o homem que Kafka encarregou de queimar, sem ler, “cadernos, manuscritos, cartas, rascunhos” depois de sua morte. Além de amigo e interlocutor durante mais de 20 anos, Brod foi o primeiro leitor a reconhecer, e anunciar, a genialidade de Kafka (em 1915, pouco depois da publicação de A Metamorfose, Brod anotou em seu diário que o amigo era o maior escritor de sua época). Ou seja: talvez o próprio Kafka desconfiasse que Brod era a pessoa menos indicada para cumprir a missão de encurtar sua obra. Brod não apenas não atendeu ao pedido, como publicou postumamente O Processo (1925), O Castelo (1926) e Amerika (1927), editou (com cortes) seus diários e escreveu sua primeira biografia. Valeu, Max.
Quando morreu em Tel Aviv, em 1968, Brod deixou para sua secretária, Esther Hoffe, toda sua papelada, inclusive alguns originais de Kafka. Esses documentos, que ficaram durante anos guardados em um apartamento bagunçado e cheio de gatos, foram objeto de uma prolongada disputa judicial entre Israel, Alemanha e a filha de Esther, Eva. A fantástica história real do julgamento, que chegou ao fim apenas em 2016, é narrada no livro O Último Processo de Kafka, de Benjamin Balint.
Talvez o termo “kafkiano” tenha se tornado um clichê não apenas pelo uso excessivo, e muitas vezes indevido ou superficial, mas pela insistência da realidade em refestelar-se no absurdo.