Há quase 50 anos, quando nem mesmo os fotógrafos profissionais sofriam de síndrome de abstinência quando eram separados de suas câmeras por alguns minutos, Susan Sontag escreveu sobre um mundo saturado de imagens. No livro Sobre Fotografia (1977), a ensaísta norte-americana sugere que a vasta coleção de registros fotográficos das principais tragédias do século 20 pode ter servido tanto para despertar consciências quanto para amortecê-las, alterando a forma como as pessoas percebem a realidade: “Fotografias produzem história instantânea, sociologia instantânea, participação instantânea. Mas há um limite para a quantidade de história e de sociologia que alguém consegue consumir. À medida que as fotografias se tornam cada vez mais o resíduo do que está acontecendo, sua realidade se dilui”.
Todos os que acompanham as enchentes no Rio Grande do Sul de longe, do alto ou do seco são, para usar uma expressão de Sontag, “turistas da realidade”. Por mais pungentes que sejam as cenas, apenas apreendemos “a dor dos outros” (outra expressão sontaguiana) até certo ponto. Ainda assim, fotografias e vídeos, amadores e profissionais, têm cumprido a função de capturar a atenção do país e do mundo. E na era da informação, atenção é um recurso escasso e valioso. É possível que essa atenção dure menos tempo do que o necessário para que a vida volte mais ou menos ao normal no Estado, mas esse é um problema para mais tarde. Neste momento, precisamos de imagens-síntese, como a do cavalo Caramelo, e também de imagens-denúncia, imagens-consolo, imagens-pedidos de socorro – para que o assunto não saia da pauta tão cedo e para que ninguém imagine que o problema estará resolvido quando as águas finalmente baixarem.
O que distingue as enchentes no Rio Grande do Sul de catástrofes naturais anteriores, no aspecto da iconografia, é o uso massivo, e talvez inédito nessa dimensão, de ferramentas que facilitam a criação de uma realidade visual paralela. Nas últimas semanas, imagens falsas da catástrofe geradas por inteligência artificial ultrapassaram a cota de inundação nas redes sociais. Muitas com a intenção de gerar engajamento e monetização (quanto mais chocante e grotesca a cena, mais compartilhamentos), outras tantas com o objetivo político de criar falsos heróis ou falsos bandidos. Em ambos os casos, é muito fácil ser enganado.
É provável que o Rio Grande do Sul se transforme em exemplo não apenas do que acontece quando a preocupação com as mudanças climáticas é empurrada com a barriga por agentes públicos com outras prioridades, mas também dos riscos de viver em um ambiente em que é quase impossível distinguir o falso do verdadeiro – e ninguém confia em ninguém. Ou seja, dois dos principais problemas do mundo contemporâneo estão em exibição, neste exato instante, em uma única vitrine: a nossa casa.