Não é a primeira vez que eu acompanho, de longe, um momento de apreensão e sofrimento no Rio Grande do Sul. Eu havia acabado de me mudar para Nova York quando a pior onda da covid atingiu o Estado, em abril de 2021. Lembro da tensão quando alguém da família adoecia, da preocupação com os amigos e conhecidos que foram parar no hospital, da aflição pela chegada de uma vacina que – opus magnum do negacionista militante que ocupava a Presidência da República – ainda não estava disponível.
Com as enchentes tem sido diferente, ainda que a tristeza, a sensação de impotência e a indignação sejam muito parecidas. (Quando as águas baixarem, vamos ter que falar seriamente sobre negacionismo climático e sobre como essa praga se manifesta na esfera pública e privada no Brasil, do descaso na manutenção de uma bomba de água à flexibilização das leis que protegem o meio ambiente.) Desta vez, o céu desabou sobre nós como um golpe, não ao longo de semanas e meses. O choque talvez seja ainda mais brutal porque, desde o início, a enchente produziu registros dilacerantes. Não apenas fotos e vídeos amadores, mas também muitas imagens aéreas, captadas por drones. A enchente de 1941 é lembrada até hoje por algumas fotos em preto e branco. A de 2024 ficará registrada por centenas, talvez milhares, de vídeos. Os dramas individuais e coletivos vazaram, em diferentes dimensões, para todos os lados. Nada ficou seco.
Nos últimos dias, fomos todos arrastados por uma correnteza de sofrimento tão grande que é difícil se concentrar ou pensar em qualquer outra coisa
Pelo celular, vimos casas arrancadas do chão, pontes e estradas se desfazendo, embarcações percorrendo ruas onde uma semana antes se caminhava. Mas, como sempre, são as pessoas que nos revelam a dimensão real de uma tragédia. Vimos sobreviventes aguardando resgate no vão de um telhado e pessoas que desapareceram nas águas quando a ajuda já se aproximava. Vimos filhos reencontrando um pai que havia ficado para trás e mães abraçadas em crianças dentro de helicópteros. Vimos o Gasômetro transformado em porto de acolhimento de refugiados e gente circulando em volta do Mercado Público de barco, repetindo 1941. Mas 2024 foi pior, está sendo pior.
Nos últimos dias, fomos todos arrastados por uma correnteza de sofrimento tão grande que é difícil se concentrar ou pensar em qualquer outra coisa. Mal conseguimos parar para lamentar os mortos e desaparecidos porque ainda é preciso providenciar resgate, abrigo, cuidado, doações. Para quem está longe, como eu, é como assistir a um filme-catástrofe em tempo real. Não em um cenário distante ou criado por computador, mas exatamente no centro do mundo, o meu mundo.