Ivan Ilitch havia acabado de morrer pela terceira vez, no meu colo, quando li a notícia da morte do escritor Paul Auster, aos 77 anos, em sua casa no Brooklyn, em Nova York. Contando assim, não parece, mas na hora me pareceu uma coincidência comovente. Melhor do que coincidência: uma rima.
A novela A Morte de Ivan Ilitch (1886), de Leon Tolstoi, e o “Retrato de um homem invisível”, de Paul Auster, relato não ficcional que abre o livro A Invenção da Solidão (1982), ocupam lugar de honra na minha biblioteca imaginária de textos essenciais. Ambos são pequenas obras-primas de concisão de autores que escreveram romances celebremente extensos (Guerra e Paz e 4321). Ambos usam uma morte como ponto de partida da narrativa.
Ivan Ilitch começa no fim, no momento em que os colegas do personagem principal, um juiz de 45 anos, ficam sabendo que ele morreu, depois de uma curta e devastadora doença. Você sabe como é. A primeira reação do grupo é de comoção com a notícia que todos já estavam esperando. Logo em seguida, o lado prático das coisas toma conta da conversa e dos pensamentos. Quem vai substituí-lo? Quem pode ganhar uma promoção ou uma transferência com a sua morte? Como acomodar uma ida ao velório em meio a um dia cheio de outros afazeres? Vai dar tempo de sair para jantar depois de cumprir a obrigação de ir cumprimentar a família? Nas duas primeiras leituras, o sarcasmo dessas primeiras páginas havia me escapado, soterrado talvez sob o peso dos capítulos seguintes, em que o autor parece desfiar fibra por fibra todos os nossos piores medos sobre a experiência física da morte. Desta vez, me pareceram mais intensas as dores morais de Ivan Ilitch, o medo que ele tem de não ter vivido “do jeito certo”. Mas qual era o jeito certo, ele se pergunta, sabendo que já não faz diferença a resposta.
Em “Retrato de um homem invisível”, ao contrário, a morte em questão é rápida e sem aviso prévio. Paul Auster é um jovem escritor em começo de carreira quando decide escrever sobre o pai que havia acabado de morrer. Um homem que parecia distante não apenas dos outros, mas de si mesmo: “Desprovido de paixão por coisas, pessoas ou ideias, incapaz ou relutante em se abrir em qualquer circunstância, ele conseguiu manter-se a distância da vida”.
Tanto o personagem fictício quanto o personagem real morrem sem ter realmente vivido, no sentido não apenas de fruir a vida, mas de examiná-la. A literatura lhes deu uma segunda chance. Através de nós, leitores, eles voltam a existir e nos convidam a pensar – não na morte, mas no que vem antes. O diretor japonês Akira Kurosawa deu à sua livre adaptação da novela de Tolstoi um título simples e belo: Viver.