No final dos anos 1970, cabiam em um compacto simples as compositoras que eram ouvidas na sala de jantar da família brasileira. Vasculhando os discos do meu pai, talvez eu topasse com a sofrência de Dolores Duran (“há um adeus em cada gesto, em cada olhar”) ou Maysa (“meu mundo caiu”) – e estávamos conversados.
Para quem, como eu, estava chegando à adolescência naquela época, não havia muitos exemplos de mulheres escrevendo sobre amores que não acabavam em fossa, mundos desabados ou tragédias. Entre tantas Amélias, Doralices e Carolinas, não se escutava a voz das que não passavam fome sem reclamar, não levavam os homens à ruína completa por pura perfídia nem se conformavam com o papel de musas abstratas. Faltava uma ovelha negra para arrombar aquela festa.
Em 1979, Rita Lee já havia entrado e saído dos Mutantes, feito propaganda de posto de gasolina, gravado dois discos solo e mais quatro com a banda Tutti Frutti, mas, para as meninas da oitava série do meu colégio, ela passou a existir quando emprestou sua voz para o comercial mais comentado (e censurado) daquele ano. Nenhuma de nós sabia abacate sobre sexo, mas a letra de Mania de Você, combinada com as imagens de amassos embaixo d’água e o slogan “Tire a roupa para quem você gosta”, dava uma boa ideia do que estávamos perdendo. Rita Lee era a própria afirmação da liberdade, da alegria e do desejo feminino sem culpa. Tudo isso pode parecer banal em tempos de Anitta e MC Pipokinha, mas foi conquistado a muque por ovelhas negras como Rita, que abriram caminho para que outras mulheres, décadas mais tarde, pudessem repetir o gesto – nem sempre de forma tão genuína ou com a mesma graça.
É impossível exagerar o impacto que Rita Lee teve naquele momento de abertura ampla, geral e irrestrita para a década em que o rock nacional teria seu breve momento de glória. Suas músicas colocaram o país inteiro para dançar e eram onipresentes nas rádios, nas festinhas, nas aberturas de novela. Passada essa fase mais pop, Rita Lee continuou produzindo hits, mas perdeu espaço nas paradas e nos grandes estádios. Renasceu, nos anos 2000, como tuiteira inspirada, exibindo a mesma verve e bom humor de sempre. Quando parou de fazer shows, em 2012, começou a escrever. Deixou dois livros de memórias: o delicioso Uma Autobiografia (2016) e o ainda inédito Outra Autobiografia, em que fala sobre o câncer e a velhice.
Com talento inato para não se levar a sério demais, mutante até o fim, Rita Lee morreu nos ensinando que é possível envelhecer sem perder o rebolado.