Era o início dos anos 1980, e eu sabia quase nada sobre quase tudo. Tão inocente sobre os horrores da Guerra Civil Espanhola quanto sobre os grandes mestres da pintura universal, topei com uma reprodução da Guernica em uma revista. Se você já viu o fabuloso mural de Pablo Picasso (1881 - 1973), ao vivo ou reproduzido em algum lugar, pode imaginar minha reação. Mesmo em versão minúscula e completamente desprovida de aura, o quadro costuma sequestrar a atenção do observador. Nada ali está parado, nada está em silêncio, nada está resolvido. Guernica nos puxa para dentro de uma guerra que está sempre voltando a acontecer.
Uma obra monumental como Guernica seria suficiente para garantir a posteridade de qualquer artista, mas Picasso fez muito mais – antes e depois. Trabalhou sem parar durante quase 80 dos seus 91 anos e não precisou morrer para tornar-se um mito.
Em 2023, essa posteridade mitológica completa 50 anos sendo desafiada não pela irrelevância ou por nossa adoração por Van Gogh, mas pelo espírito da época: para a sensibilidade contemporânea, o homem egoísta e imperfeito que Picasso foi deveria medir-se com o gênio – tarefa inglória até mesmo para os castos e ilibados, se os há.
Mais de 40 exposições em homenagem ao artista serão realizadas até o fim do ano, na Europa e nos Estados Unidos, explorando diferentes aspectos de uma obra vasta e multifacetada, mas é provável que a discussão sobre sua relação com as mulheres receba mais atenção do que pareceria razoável até pouco tempo atrás. Em Nova York, uma das três mostras dedicadas ao pintor terá curadoria de Hannah Gadsby, comediante australiana que ocupa boa parte do especial Nanette (Netflix) explicando por que odeia Picasso, o homem, e por consequência sua obra. A exposição It’s Pablo-matic, que será aberta no início de junho, no Museu do Brooklyn, promete colocar em discussão não apenas a misoginia do artista, mas a mitificação em torno do seu legado.
Se eu achasse inútil discutir o que os grandes personagens da História fazem quando não estão trabalhando, não seria uma leitora tão apaixonada por biografias. O que me incomoda nesse tipo de abordagem não é tanto o cacoete de analisar o passado à luz das preocupações do presente, o que talvez seja inevitável, ou a óbvia sinalização de virtude por parte de quem encena o espetáculo do escândalo diante da imperfeição moral de pessoas que já morreram, mas minha convicção inabalável de que, procurando bem, todo mundo tem pereba, marca de bexiga ou vacina. Inclusive a bailarina.