Nas ladeiras da memória da cidade onde eu nasci, convivem o mercadinho de secos e molhados que eu frequentava no século passado (mais ou menos na época do Secos & Molhados), a pizzaria de breve e retumbante sucesso que se instalou ali alguns anos depois e a pet shop que ocupa temporariamente o mesmo endereço – antes que uma farmácia ou um novo prédio de apartamentos inaugurem capítulos inéditos nessa notável saga de inquietude imobiliária. Na mesma esquina inventada de Porto Alegre, reencontro não apenas o que fisicamente está lá ou já esteve, mas todos os momentos, graves ou banais, em que plantei sobre o asfalto as recordações que florescem, apenas para mim, toda vez que cruzo a avenida.
Visitar a cidade natal uma vez por ano torna tudo mais agudo e intenso: as nostalgias, as novidades, as idiossincrasias, o sotaque. É como se cada aspecto do que está em volta ficasse mais concentrado e nítido – não apenas o que é amável e acolhedor, mas também o que incomoda, decepciona, abate. Se a rotina dilui as belezas e as asperezas, o estranhamento desperta a sensibilidade. A distância convida a olhar mais e melhor.
Nas duas últimas semanas, convivi com uma viatura da Brigada Militar estacionada na porta do meu edifício. Meu apartamento em Porto Alegre fica em um bairro onde roubos de carros são frequentes, e aparentemente alguém decidiu dar um basta no problema de maneira ostensiva. Se a presença dos policiais instalou uma provisória sensação de segurança, provocou também um certo desconforto. Como se, no bairro das ruas bonitas e cheias de árvores, fôssemos obrigados a nos lembrar de outras partes da cidade, não tão arborizadas nem tão bem pavimentadas, onde os crimes não são combatidos com tanta eficiência e os moradores não são cumprimentados todas as manhãs com a mesma gentileza.
A Porto Alegre dos assaltos, da desigualdade e dos negócios falidos é também a dos novos bares e restaurantes, das calçadas animadas e da vida cultural em ebulição. A exposição em homenagem a Proust na Biblioteca Pública, o show superlotado do Almôndegas no Araújo, o festival de música (e de carinho) dedicado ao meu amigo Paulo Moreira, o POA Jazz, o Porto Alegre Em Cena, a inauguração do Teatro Oficina Olga Reverbel, o South Summit: tudo isso aconteceu em março, apenas em março, enquanto eu estava aí.
Vou embora com a imagem de viaturas estacionadas na esquina de casa, sinalizando o que não vai bem, mas com a sensação – subjetiva, parcial, talvez ingênua, mas cheia de “pensamento desejante” – de que o melhor da cidade reage, resiste e pulsa. Como nunca, como sempre.