No princípio, achei que era piada. Boicote a estrogonofe, vodca, salada russa… Depois virou piada mesmo: um meme em que o líder da Legião Urbana era rebatizado com o nome de “Renato Ucraniano”. Quando uma universidade italiana cogitou cancelar um curso sobre Dostoievski, pensei que a coisa tinha passado dos limites.
O historiador israelense Yuval Harari gosta de lembrar que o Homo sapiens conseguiu conquistar o planeta graças a sua capacidade de criar ficções, compartilhá-las e acreditar nelas como se fossem verdades inquestionáveis. Inventamos deuses e seus rituais, famílias e seus hábitos, países e suas fronteiras, o dinheiro e seu valor, guerras e suas motivações. Por mais que nossa vida se organize e dependa dessas combinações coletivas, é importante ficar alerta para o caráter circunstancial de tudo que o homem cria em volta de si para se sentir mais seguro ou poderoso.
Se Putin acredita que os ucranianos são russos, e os ucranianos preferem continuar ucranianos, mesmo que isso signifique arriscar a vida para defender o país da invasão, eu acredito em uma nação muito mais antiga do que qualquer superpotência com o poder de decidir, hoje, se o futuro da nossa espécie será catastrófico ou apenas imprevisível. Esse país não tem moeda ou território, mas possui um exército leal disposto a defender sua bandeira diante de qualquer ameaça das tropas filistinas.
Nesta nação onde muitos de nós passam algumas horas por semana e outros residem em tempo integral, todos possuem nacionalidade dupla. Dostoievski, por exemplo, era russo – mas não só. Escrevia em russo, sobre russos, mas falava também sobre eu e você, compatriotas que nascemos e vivemos a quilômetros de distância no espaço e no tempo, mas sentimos medo, raiva e ternura exatamente da mesma forma que ele.
Quando leio Tchekhov, Tolstoi, Turgueniev, quando assisto aos filmes do Tarkovski ou contemplo as piruetas de um bailarino russo, sinto orgulho dos heróis da nossa pátria. Não essa pátria comandada por Putin, que pode ou não sobreviver aos arroubos do tiranete de plantão, mas à dos compatriotas que celebram a beleza e a fragilidade da experiência humana. Cidadãos de uma superpotência transnacional e indestrutível, ainda que permanentemente ameaçada pela estupidez de outras nações inventadas.
Minha pátria, a Arte.