Joni Mitchell, que além de compositora genial, cantora, instrumentista e diva absoluta também é artista plástica, certa vez comparou o ofício de pintar com o de compor e cantar em público: "Um artista pinta um quadro, desfruta a satisfação de criar e é isso. O quadro é pendurado na parede, alguém o compra e talvez outra pessoa o compre de novo mais tarde. Ou ninguém se interessa, e o quadro fica esquecido em algum canto. Mas nunca – nunca – alguém pensaria em pedir a Van Gogh: ‘Pinta Noite Estrelada de novo aí, cara’ ".
Por diferentes motivos, músicos sempre exerceram o direito de recusar-se a continuar pintando sua Noite Estrelada indefinidamente. Madonna, uma garota materialista em um mundo idem, chegou a dizer que só voltaria a cantar Like a Virgin se alguém lhe pagasse 30 milhões de dólares. Roberto Carlos, supersticioso e maniático, ficou anos sem cantar Quero que vá tudo pro inferno para evitar as “vibrações negativas” da letra.
Nos últimos tempos, na hora de decidir o que querem ou não mostrar ao seu público, alguns artistas têm levado em conta não apenas suas idiossincrasias e evolução musical, mas também o espírito da época e suas suscetibilidades estéticas. No ano passado, os Rolling Stones anunciaram que deixariam de cantar Brown Sugar (1971), um dos maiores sucessos da banda, porque a canção evoca a exploração sexual de mulheres negras. A onda parece ter batido por aqui também: em depoimento para o documentário O Canto Livre de Nara Leão, que repercutiu nas redes sociais na semana passada, Chico Buarque surpreendeu parte dos fãs ao admitir, meio sem jeito, que não cantava mais Com açúcar, com afeto porque a música era considerada machista nos dias de hoje.
Nasci em 1966, ano em que Chico compôs Com açúcar, com afeto para Nara Leão. Para mim, como para muitas meninas da minha geração, a música sempre soou tão propositalmente anacrônica quanto A Banda ou Noite dos Mascarados. Não porque mulheres submissas e o patriarcado tivessem sido extintos do planeta enquanto nos aproximávamos da vida adulta, mas porque a idealização da sofrência feminina já soava antiquada naquela época (Amélia, que nem bolo fazia porque achava bonito não ter o que comer, é de 1942). Sugerir que Com açúcar, com afeto era machista soaria tão absurdo quanto imaginar que o verso “Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas / Vivem pros seus maridos, orgulho e raça de Atenas” era um elogio ao estilo de vida das esposas da Grécia Antiga.
É óbvio, mas precisa ser repetido: leituras literais de obras de arte não são apenas tolas e limitadas, mas arrogantes em sua pretensão de eliminar paradoxos desconfortáveis e cobrir todas as contradições da natureza humana com a pátina dos bons sentimentos. Seria como sugerir a Van Gogh que pintasse uma noite um pouco menos convulsionada ao observar o mundo desde a janela de um hospício em Saint-Remy.
Chico Buarque pode se dar ao luxo de abandonar algumas de suas canções à própria sorte, tão vasta é sua coleção de obras-primas, mas não deixa de ser irônico que o compositor de Roda-Viva tenha sido arrastado pela corrente da patrulha até não poder resistir: “A gente quer ter voz ativa, no nosso destino mandar. Mas eis que chega a roda-viva e carrega o destino pra lá”.