Tomar a pílula azul e ficar de boas, sem nenhuma pista sobre o que está rolando, ou escolher a pílula vermelha e descobrir a verdade oculta sobre tudo? Mais de 20 anos depois de Matrix (1999), o dilema está de volta aos cinemas em Matrix Resurrections, quarta parte da série de ficção científica que aparentemente todo mundo assistiu, menos eu.
O lance é que o sucesso de Matrix foi tão esmagador que, mesmo quem não assistiu ao filme, talvez tenha ouvido falar da famosa “cena das pílulas” – quando Morpheus (Laurence Fishburne) pergunta a Neo (Keanu Reeves), que vive no ambiente ilusório chamado Matrix, se ele quer continuar acreditando no que está vendo ou prefere acordar para a realidade.
A pílula vermelha poderia ser uma boa metáfora da curiosidade científica. Afinal, discordar do senso comum e abrir mão de algumas certezas confortáveis é um bom caminho para aprender coisas novas – e sabe-se lá aonde a gente chega quando começa a duvidar que a Terra seja plana ou que o mundo foi criado há cinco mil anos.
O caminho que a metáfora acabou tomando na cultura pop foi bem diferente. O oposto, eu diria. Nos últimos anos, “tomar a pílula vermelha” tornou-se uma expressão popular em fóruns que debatem teorias conspiratórias e espalham ideias misóginas, homofóbicas, racistas, anticientíficas.
Sim, o pessoal “acordou” para uma realidade. O problema é que essa “realidade” (as bizarrices do QAnon, as mentiras sobre as vacinas, a negação do aquecimento global e sabe-se mais lá o quê) costuma se adaptar ao gosto do freguês. Alguém que acredita que Hillary Clinton está por trás de uma rede internacional de pedofilia ou que kits gays são distribuídos em escolas no Brasil pode ser ingênuo, desinformado ou sofrer de algum tipo de distúrbio mental/emocional. Ingenuidade, desinformação e desequilíbrio que acabam servindo aos interesses de quem sabe muito bem o tamanho da mentira que está sendo contada e como ela pode ser manipulada.
Lilly e Lana Wachowski, as duas irmãs trans que dirigiram e escreveram o roteiro de Matrix, têm deixado muito claro o que pensam da apropriação da sua criação pela extrema direita. Depois que Elon Musk e Ivanka Trump andaram trocando gracinhas sobre a “pílula vermelha” pelo Twitter, Lila Wachowski mandou para os dois uma resposta curta, desaforada e definitiva – que eu não vou repetir, mas você pode imaginar.