Simões Lopes Neto e Marcel Proust moraram juntos na Bordini por mais de 50 anos. Já estavam mortos, é verdade, mas não arrastavam correntes ou assustavam as visitas. Durante o período em que coabitaram no Moinhos de Vento (e o nome do bairro não podia combinar melhor com a alma quixotesca dos dois), quem frequentava seus domínios saía com a viva impressão de que aquela era uma das casas mais bem-assombradas de Porto Alegre.
Carlos e Olga Reverbel, os gentis anfitriões da dupla, compartilhavam o gosto pela leitura, mas tinham lá suas divergências. Carlos, guri de estância por casualidade e biógrafo de Simões Lopes Neto por vocação, era obviamente um simoniano avant la lettre. Olga, por sua vez, lia Proust desde criancinha – ou assim parecia aos seus muitos amigos e alunos.
Como o casal mantinha duas bibliotecas separadas em andares diferentes da casa, não havia disputa por espaço nas estantes. Proust, porém, levava vantagem no quesito iconografia: o retrato mais famoso do autor preferido da dona da casa ocupava lugar de honra na parede da sala. Nas conversas e na alma da casa, porém, é justo dizer que o jogo saía empatado.
Simões Lopes Neto escreveu sobre o sul profundo da América do Sul, Marcel Proust sobre o centro do mundo civilizado. Um recriou o linguajar simples dos galpões, o outro capturou todo o esnobismo dos salões mais sofisticados de Paris. Proust foi reconhecido em vida, o velho Simões nem tanto. Ainda assim, há algumas aproximações possíveis. Os dois escritores foram contemporâneos (o gaúcho, cinco anos mais velho) e morreram aos 51 anos de idade. Ambos, cantando suas aldeias, foram universais e continuam sendo lidos, estudados e amados até hoje: o biênio Simões Lopes Neto (2015/2016) foi celebrado por aqui como o biênio Proust (2021/2022) está sendo comemorado por lá.
Sem falar, claro, da convivência em uma certa casa da Rua Bordini e de uma notável coincidência. Em 1945, Reverbel visitou a casa onde Simões Lopes Neto morreu, em 1916. Foi entrevistar a viúva, Dona Velha, que ainda morava no mesmo lugar. Pouco tempo depois, em 1947, passando uma temporada em Paris, o jornalista descobriu, por acaso, um hóspede ilustre na história do velho hotel onde estava morando: Marcel Proust havia morrido naquele mesmo prédio, 25 anos antes.
Hoje tudo é memória: os escritores, o casal Reverbel e até a casa da Bordini, que virou uma loja de móveis. Tudo, menos os livros, claro, que continuam tão vivos quanto no dia em que foram escritos. Dizem que Blau Nunes e Charles Swann até dividem um mate, beliscando madeleines, cada vez que um novo (ou velho) leitor aproxima os dois na mesma cabeceira.