Se você, como eu, tem um fraco por filmes do tempo do opa, talvez já tenha assistido ao delicioso A Mulher do Dia (Woman of the Year, 1942), comédia romântica dirigida por George Stevens que inaugurou a parceria – na vida e nas telas – de Spencer Tracy e Katharine Hepburn.
O filme narra os encontros e desencontros amorosos de um casal formado por uma culta e sofisticada colunista de política e um cronista esportivo pouco interessado em qualquer outro tópico além de esportes. Tess Harding (Katharine Hepburn) é tão independente e poderosa que parece inverossímil naquele comecinho dos anos 1940, mas foi inspirada em uma pessoa de verdade: a jornalista Dorothy Thompson (1893-1961), casada com o Nobel de Literatura Sinclair Lewis e eleita a segunda mulher mais influente dos EUA (daí o título do filme) – depois de Eleanor Roosevelt. Em 1931, trabalhando na Alemanha, Thompson entrevistou Hitler e foi uma das primeiras vozes a alertar o mundo sobre os perigos do nazismo.
A premissa do filme é datada, mas nem tanto: pode dar certo um casamento em que o homem e a mulher trabalham, mas apenas um deles espera que o jantar seja servido pelo outro quando chega em casa? Apesar do final “feliz” (Tess, na cozinha, tentando preparar o café da manhã do marido), a resposta implícita é não, não rola, pelo menos não sem o sacrifício da janta ou do trabalho. Quando Tess ganha o título de “mulher do ano”, Sam (Spencer Tracy), irritado, diz que ela não merece o prêmio porque, afinal, não é uma “mulher de verdade”. Não por não saber cozinhar, apenas, mas por não apresentar qualquer vocação para cuidar de crianças.
Corta para 2022. Um dos filmes mais comentados deste comecinho do ano é A Filha Perdida (Netflix), baseado no livro de Elena Ferrante que traz à tona o lado mais sombrio da maternidade. Leda, a personagem principal, é atravessada pela culpa e pelo conflito de duas pulsões igualmente poderosas: cuidar das crias e viver as próprias paixões.
Oitenta anos separam os dois filmes.
A “mulher de verdade” deixou de ser a dona de casa, mas a ambiguidade de sentimentos que cerca a maternidade, amar ao outro incondicionalmente sem perder-se no meio do caminho, ainda não foi resolvida. E provavelmente nunca será.