O que pode um general de cara amarrada contra uma menina que sabe o que quer? Até o retorno dos militares ao poder, em 2019, a imagem mais famosa de um presidente interagindo com uma criança era uma fotografia de 1979 em que o general Figueiredo aparece estendendo a mão para uma garotinha que se recusa a cumprimentá-lo. Era apenas birra contra um adulto carrancudo, não um manifesto precoce, mas o que entrou para a História foi o gesto desobediente que refletia o estado de espírito de boa parte da nação naquele momento.
A menina era Rachel Clemens e morreu em 2015, aos 40 anos. O fotógrafo Guinaldo Nicolaevsky, que registrou a cena em Belo Horizonte, também já morreu. Ambos foram poupados da farta iconografia que vem sendo produzida pelo presidente Jair Bolsonaro em suas interações com crianças. Tudo indica que essas imagens também vão entrar para a História.
Subliminarmente, a foto de Rachel anunciava a Anistia, o fim iminente do regime militar, a volta da liberdade – e mesmo assim a imagem arranca um sorriso de simpatia até de quem apoiou a ditadura. Isso porque a menina na foto era apenas uma criança sendo criança, não uma peça publicitária. As imagens em que Bolsonaro interage com crianças, ao contrário, são armadas (em ambos os sentidos) e sempre envolvem, além do contato físico forçado, algum tipo de violência – real ou simbólica. Seja arrancando a máscara do rosto de um menino, como se investido de um pátrio poder absoluto, seja adotando uma versão tropical da estética talibã ao posar com um garoto de farda e fuzil.
Depois de transformar crianças em anúncios ambulantes de armas, sonegar uma palavra de conforto a quem perdeu os pais durante a pandemia e de colar na própria filha o rótulo de “fraquejada”, o presidente continua inovando em suas técnicas de aviltamento infantil. Na semana passada, vetou o projeto que atendia meninas pobres que deixam de ir à escola por falta de condições mínimas de higiene durante a menstruação.
Se Rachel Clemens entrou para a História pela atitude de desafio, o menino do fuzil deve ser lembrado menos pela bizarra arma de brinquedo do que pelo olhar melancólico que deixou escapar – retrato do estado de espírito de boa parte dos brasileiros, de todas as idades, nesta véspera de Dia das Crianças.