As piadas de Dave Chappelle têm tudo (menos graça, eu diria).
Está tudo lá: racismo, transfobia, feminismo, cultura do cancelamento, humor x politicamente correto... “Tudo”, nesse caso, refere-se ao longo rol de discussões que costumam acirrar os ânimos nas redes sociais – aquele lugar que não existe de verdade, como o próprio comediante observa a certa altura do stand up Encerramento (Netflix).
Para quem nunca ouviu falar do humorista mais comentado do momento, uma breve recapitulação das cenas dos últimos capítulos. Chappelle, 48 anos, notabilizou-se como um artista que diz “o que os outros não têm coragem de dizer”, talento que lhe rendeu ódio e devoção na mesma medida – além de fama e fortuna.
Em Encerramento, faz piadas com mulheres, judeus, gays e transgêneros – ao mesmo tempo em que aponta o viés racista dentro de todas as minorias citadas. A plateia vibra. Fora do teatro, as reações são menos unânimes. Na última quarta-feira, funcionários da Netflix manifestaram-se contra o humorista, enquanto outros tantos o defenderam. No New York Times, Roxane Gay, ativista dos direitos LGBTQIA+, escreveu que Chappelle gosta de falar o que quer, mas não é muito bom em ouvir críticas. Na Folha de S. Paulo, o historiador André Boucinhas elevou Encerramento à categoria de obra-prima.
A repercussão do show soa como mais um round do já puído debate a respeito do que pode ou não ser dito em uma obra de arte. Minha posição nessa conversa é fácil de resumir. Crítica? A favor. Censura ou cancelamento? Contra. No caso específico de Dave Chappelle, me chama a atenção o fato de o humorista ter erguido uma improvável ponte entre conservadores e progressistas, direita e esquerda, apocalípticos e integrados. Todos concordando que ele diz “o que tem que ser dito”. Seja porque critica políticas identitárias e desafia a cultura do cancelamento, seja porque traz de volta as velhas e boas piadas com minorias. Quem se sente um pouco desconfortável pode encarar esse tipo de humor como “metaironia”. Quem acha divertido apenas se recosta na poltrona e ri.
Não é o meu caso. Não dá para explicar por que uma pessoa acha uma coisa engraçada e outra não. O humor pode estar relacionado ao repertório cultural, à geração e mesmo ao sexo, mas sempre sobra uma pontinha subjetiva inexplicável. Eu poderia argumentar que algumas tiradas de Dave Chappelle são nível Costinha de sofisticação. Ou que seu machismo transbordante desliga todos os fios da minha conexão. Mas nada disso explica totalmente o que me incomoda no show.
Talvez o principal problema com Dave Chappelle seja a combatividade performática, errática, já distante do impulso genuíno que, dizem, era sua marca no início da carreira, quando atacava quem tinha mais poder do que ele. Hoje, no topo da cadeia alimentar do showbiz, ele morde e assopra, ataca e se defende, como numa luta de boxe (ou telecatch) em que o público é sparring e patrocinador ao mesmo tempo. Em 2021, Chappelle joga álcool na fogueira não para iluminar, mas para ver o circo pegar fogo. E de palhaço com fumos de Nero já basta o nosso, que tem menos graça ainda.