A Capitu da Praia da Glória já estava dentro da Capitu de Mata-Cavalos ou esta foi mudada naquela por efeito de algum caso incidente? Quem se pergunta, claro, é Bentinho, o narrador nada confiável de Dom Casmurro. Se Capitu o traiu, e sabemos que ele está convencido de que sim, a menina por quem ele se apaixonou na infância era o botão da mulher que o enganaria ou seu caráter dissimulado foi sendo moldado aos poucos sem que ele percebesse?
Como Bentinho, me pergunto se Regina Duarte já era Pra Frente Brasil quando Malu Mulher ou se algum caso incidente transformou a atriz que o país amava na triste figura que sepultou o que restava da própria reputação durante uma desastrosa entrevista para a CNN na semana passada. Antes de interromper a conversa e ofender os jornalistas, Regina minimizou os mortos e torturados pelo regime militar ("Na humanidade, não para de morrer [gente] (...) Não quero arrastar um cemitério de mortos nas costas"), cantarolou Pra Frente Brasil, hino extraoficial da Copa de 1970 e também da ditadura, e voltou a interpretar a mocinha ingênua e bem-intencionada. Visivelmente desconfortável com o papel de servidor público que precisa prestar contas do seu trabalho e sem um texto decorado na ponta da língua, Regina tentou, sem sucesso, passar uma imagem de "leveza". A insustentável leveza dos desesperados.
Regina Duarte nunca foi a maior atriz do Brasil, mas talvez tenha sido uma das mais populares e queridas. No seriado Malu Mulher (1979-1980), que tratou de temas como aborto, divórcio e violência doméstica em pleno regime militar, Regina se reinventou e trocou a fantasia de "namoradinha do Brasil" pelo papel de mulher que trabalha, cria a filha sozinha e vai para a cama com quem ela quer. Nada naquela personagem lembrava minha mãe, minhas tias ou qualquer outra mulher que eu conhecesse aos 13 anos. Foi um pequeno Big Bang intelectual. Posso dizer que descobri o feminismo graças a uma mulher que, por "caso incidente", hoje trabalha para um homem que se orgulha da própria misoginia.
Quando artistas como Rubem Fonseca, Aldir Blanc, Moraes Moreira, Flávio Migliaccio ou Sérgio Sant'Anna morrem, nosso luto não é apenas pelos ídolos ou pela obra que deixaram, mas por uma parte da nossa sensibilidade e da nossa própria história que se vai com eles. Quando um artista desonra o próprio passado, lamentamos não apenas as escolhas que ele fez ou a pessoa que se tornou, mas as boas memórias que ele nos rouba.