Jornalista formada pela UFRGS, com especialização em Economia da Cultura, cronista, autora dos livros Agora Eu Era e Meus Livros, Meus Filmes e Tudo Mais.

Doações

O Brasil entende muito de assistencialismo e pouco de investimento social

Ainda precisamos de quem dá o peixe, mas precisamos cada vez mais de quem ensine a pescar

Cláudia Laitano

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A pandemia deu origem a um personagem muito ativo nas redes sociais: o fiscal do desapego. Se o Itaú doou R$ 1 bilhão, poderia ter dado o dobro. Se Mark Zuckerberg (Facebook) doou US$ 25 milhões, foi um pingo d'água comparado a Jack Dorsey (Twitter), que entrou com US$ 1 bilhão. Se uma empresa doa produtos para hospitais ou trabalhadores da saúde, está fazendo marketing. Se doa comida, não faz mais que a obrigação. Se uma celebridade arrecada doações em suas redes sociais, está se aproveitando da crise para se promover. Se distribui um valor considerado baixo demais, está sendo mesquinho, pão-duro, mão-de-vaca. E assim vai, e assim vamos: elogio que é bom, nunca – ou quase nunca. Xuxa, uma das primeiras celebridades brasileiras nesta pandemia a tornar pública sua doação (R$ 1 milhão), resumiu a situação: "Se não ajudo, criticam. Se ajudo, quero aparecer".

A questão é: como qualquer um de nós pode saber, com certeza, se está doando muito ou pouco? Em circunstâncias normais, esse já é um cálculo difícil de fazer. Em meio ao caos de proporções épicas que estamos vivendo tudo fica ainda mais urgente e emocionalmente confuso. Uma doação deve sair do que nos sobra ou daquilo que estamos dispostos a abrir mão? Como não ser mesquinho quando nosso próprio futuro nos preocupa? Anunciar publicamente uma doação é bom, porque serve de incentivo, ou ruim, porque soa como autopromoção?

O Brasil entende bem o assistencialismo, mas tem pouca tradição em investimento social

Nas últimas semanas, o Brasil atingiu uma marca histórica de doações: R$ 2,3 bilhões. Isso inclui o Itaú e outras grandes empresas, mas também as pequenas doações feitas por quem vive de salário, aposentadoria ou ocupações informais. Brasileiros, inclusive os mais pobres, costumam agir com rapidez movidos pela emoção e pela vontade de ajudar, mas não são exatamente consistentes no hábito de doar com regularidade, o que talvez ajude a entender um pouco a desconfiança e o mau humor dos fiscais do desapego em relação às doações que estão ganhando publicidade durante a pandemia.

Por algum motivo, não conseguimos criar no país um ambiente de estímulo à filantropia, seja reduzindo impostos seja criando outros tipos de incentivo. Nos EUA, ninguém acha esquisito que o ricaço coloque seu nome na biblioteca ou no museu que ele ajudou a bancar. Por aqui, até batizar um teatro com o nome de uma empresa, em troca de patrocínio, é malvisto. Azar das bibliotecas, dos museus, dos teatros, das universidades. O Brasil entende bem o assistencialismo, a ajuda urgente em momentos de crise, mas tem pouca tradição em investimento social – aquele tipo de trabalho de longo prazo que se estende no tempo e ajuda a transformar a realidade de forma permanente.

Ainda precisamos de quem dá o peixe, porque quem tem fome tem pressa, mas precisamos cada vez mais de quem ensine a pescar, a vender o peixe e a montar o restaurante de frutos do mar. Não importa o que pensam ou dizem os fiscais do desapego: neste momento, todos os tipos de doações são bem-vindos.

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