Dezenas de funcionários da Hachette Book Group fizeram uma paralisação na quinta-feira passada, em Nova York, em protesto contra a decisão da editora de publicar a autobiografia do diretor Woody Allen, Apropos of Nothing (algo como “sobre o nada”).
Em outros tempos, o livro de memórias de um dos diretores mais estimados da história do cinema estaria sendo disputado a tapas pelas editoras. Não mais. Antes de a Hachette anunciar, no início da semana passada, que o contrato com o diretor estava fechado e o lançamento estava programado para 7 de abril, o livro já havia passado pela mão de editores que sequer cogitaram a publicação. Na sexta-feira, um dia após o protesto dos seus funcionários, a editora voltou atrás e desistiu de publicar o livro.
Woody Allen foi acusado de molestar a filha adotiva Dylan quando a menina tinha sete anos, em 1992. Surgida em meio a um rumoroso e violento processo de divórcio, a acusação nunca foi comprovada. O diretor, que sempre negou o abuso, foi absolvido em todos os processos legais, mas o episódio trincou sua reputação. O assunto andava meio esquecido até o movimento #MeToo, que revelou denúncias de assédio sexual na indústria do entretenimento, reacender as discussões sobre o caso, em 2018.
Há os que acreditam na versão de Dylan e do irmão Ronan Farrow, repórter que investigou casos denunciados pelo movimento #MeToo e que, não por acaso, é filho do ex-casal Woody Allen e Mia Farrow. Há os que preferem acolher a versão de Soon-Yi e Moses Farrow (outros dois filhos adotivos de Mia Farrow) e dos especialistas que, depois de investigarem o caso, absolveram Allen de todas as acusações (grupo no qual me incluo). Entre um e outro polo, estão todos aqueles que, sem saber em qual versão acreditar, têm certeza de pelo menos uma coisa: não pega bem ficar do lado de Woody Allen. Na dúvida, considerá-lo culpado parece a opção mais segura e confortável.
O linchamento de reputações é resultado da facilidade com que nos comunicamos e manifestamos opiniões. É um efeito colateral, talvez inevitável, da vida em rede que se desdobra para o mundo real. Multidões de pessoas conectadas tanto podem se mobilizar para defender alguém que está sendo atacado injustamente quanto se unir para condenar um inocente. É do jogo. O que me choca na manifestação dos funcionários da Hachette é menos sua opinião sobre o caráter de Woody Allen do que sua postura em relação à liberdade de expressão. Que crimes, comprovados ou não, deveriam ser punidos com a anulação do direito de autodefesa? Quem determina quem tem o direito de publicar um livro ou não? Quem escolhe o que os leitores têm o direito de ler?
Você pode ser um sujeito bacana, bem-intencionado, trabalhando em uma empresa legal na maior metrópole do mundo ou um burocrata analfabeto que tenta banir livros de uma biblioteca por moralismo ou estupidez. Em essência, todos os que tentam impedir que um livro encontre seus leitores estão cedendo ao mesmo impulso primitivo e indefensável: censura.