Meu cabelo e meu rosto estão cobertos por tinta colorida e não faço ideia de quem são as meninas sorridentes que posam comigo para a posteridade, mas reconheço bem a felicidade que me acena lá do outro século. Pro Dia Nascer Feliz, onipresente nas rádios naquele verão de 1984, tocava sem parar nos alto-falantes, traduzindo – e sublinhando – a euforia instalada entre os recém-aprovados no vestibular da UFRGS daquele ano. Adoro tudo no registro daquele dia: o sorriso escancarado, a alegria compartilhada com as colegas anônimas, o olhar cheio de confiança no futuro e na universidade. Para observadores mais atentos, a palavra de ordem estampada na minha camiseta acrescenta uma camada extra de sentido histórico: "Desobedeça".
Aos 17 anos, eu não era uma anarquista – nem na prática nem na teoria – mas simpatizava com a causa da rebeldia. Aquele seria o último ano do regime militar e o primeiro da minha vida adulta – duas circunstâncias em que a desobediência era quase um imperativo moral. Para crescer e me tornar a pessoa que eu gostaria de ser no futuro, seria preciso frustrar algumas expectativas dos meus pais. Para que a campanha pelas eleições diretas chegasse às ruas em 1984, boa parte da sociedade brasileira precisou, em alguma medida, desobedecer. Às vezes, manda quem pode – e desobedece quem tem juízo.
A maior referência teórica da desobediência ainda é o filósofo americano Henry David Thoreau (1817 – 1862). No livro A Desobediência Civil, Thoreau dizia, entre outras coisas, que ninguém deveria ter que defender uma lei que considera injusta. Acima de tudo, ele era um pacifista e inspirou a resistência e o protesto civil de líderes como Martin Luther King e Mahatma Gandhi. Todo manifestante que vai para a rua pedir mudanças ou exigir seus direitos está, de alguma forma, rendendo homenagem a Thoreau.
A desobediência pode ser inconveniente, incômoda, barulhenta – basta que ela contrarie nossos interesses ou nos seja indiferente. Mas vivemos em sociedades cada vez mais complexas, em que as soluções muito simples tendem a ser ainda piores do que os problemas que tentam resolver. Não existe democracia sem conflito. Em alguns setores, porém, permanece a nostalgia do toque de silêncio obrigatório.
Na semana passada, o ministro da Educação resgatou do arquivo das palavras em desuso a expressão "balbúrdia", associada com o ambiente múltiplo das universidades. A ideia de bloquear 30% dos recursos de custeio de três universidades por motivos ideológicos acabou revelando-se inconstitucional, e o corte foi estendido para todas as universidades e institutos federais. Com esse gesto, o governo prossegue sua insana cruzada anti-intelectual, colocando artistas, pesquisadores, cientistas e professores na mira da sua errática artilharia. Desobedecer, neste momento, é não respeitar o toque de recolher das ideias. Ou seja: prepare-se para ainda mais balbúrdia, ministro.