Em 1960, uma crítica norte-americana mudou a maneira como um dos maiores romances brasileiros vinha sendo lido até então. No livro O Otelo Brasileiro de Machado de Assis, Helen Caldwell (1904-1987) sugere que o leitor de Dom Casmurro (1899) não deveria aderir sem questionamento ao ponto de vista do narrador Bentinho diante da suposta traição de Capitu.
O que temos no livro, defende a autora, é apenas uma versão parcial dos fatos – apresentada, vejam só, por uma das partes envolvidas.
E se Bentinho, como Otelo, estivesse tão louco de ciúme que fosse incapaz de ver a realidade com clareza? E se a Capitu que ele descreve fosse apenas produto de uma mente adoecida pela desconfiança? Sem nudes, áudios ou mensagens comprometedoras para sustentar suas suspeitas, Bentinho envolve o leitor em uma rede de ilações não necessariamente confiáveis. A ambiguidade já estava no livro, o que torna a obra-prima de Machado de Assis ainda mais genial, mas foram necessários 60 anos e um ligeiro deslocamento de perspectiva para que se tornasse evidente um ponto cego na leitura mais convencional do romance.
Tive um "momento Caldwell" na última semana lendo um texto do crítico Wesley Morris, do New York Times, a respeito do filme Green Book, vencedor do Oscar de 2019. A análise que o crítico faz dos filmes sobre amizades inter-raciais produzidos por Hollywood nos últimos anos destaca um traço em comum que nunca havia me chamado a atenção antes. Era o meu ponto cego.
Analisados em conjunto, fica evidente que de Conduzindo Miss Daisy (1989) ao recente Amigos para Sempre (2017), refilmagem do francês Intocáveis (2011), passando por Histórias Cruzadas (2011) e Um Sonho Possível (2009), Hollywood tem privilegiado narrativas em que o personagem branco é quem está no centro dos acontecimentos e, de certa forma, move a roda da História. No Oscar deste ano, havia dois outros filmes sobre a questão racial, Pantera Negra e Infiltrado na Klan, ambos dirigidos por cineastas negros, mas venceu o filme que, não sendo o melhor longa em competição, não era sequer o mais original entre os três sobre o mesmo assunto.
Não é preciso ser crítico de literatura ou de cinema para exercitar um certo deslocamento de perspectiva de vez em quando. Lendo uma notícia ou uma mensagem do WhatsApp, ouvindo um discurso ou discutindo na mesa de bar é sempre importante se perguntar de que posição parte determinado ponto de vista e o que pode não estar sendo levado em conta. Todos nós temos pontos cegos, espaços onde a nossa capacidade de observação falha e pode nos induzir a leituras limitadas ou imprecisas da realidade.
Esta colunista, de volta à página 4 depois de uma temporada de caderno Doc e ao jornal depois de uma pausa de dois meses, não nega seus pontos cegos, mas tenta não se acomodar com eles. Venham comigo.